Não ser mulher é a alternativa lésbica¹

Por Yuderkys Espinosa Miñoso

Há, aproximadamente, três décadas que Monique Wittig disse que “ nós lésbicas não somos mulheres”² produzindo um movimento cujas ressonâncias nos chegam até hoje em dia. Enquanto o destino da frase percorria diferentes trânsitos e recepções a favor ou contra, é certo dizer que a mesma faz mais que enclausurar: define uma identidade por oposição, abre um debate impossível de ser fechado. Por que se as lésbicas não são mulheres, uma poderia perguntar-se em seguida, o que são? Pergunta que poderia não ter poucas respostas, nem simples, pelo menos ao se assumir e se seguir a tradição desconstrutivista assumida por Wittig.
Este trabalho se centra, em primeiro momento, na frase de Wittig para tentar rever sua intencionalidade política, sua aposta, e suas repercussões para além dos próprios assuntos referentes às lésbicas; igualmente tenta fornecer uma análise crítica que indague e dê conta de suas limitações. Há aqui algumas perguntas chaves que tentarei dar resposta: De que forma e por que na afirmação de Wittig se mantêm entrecruzadas uma história do gênero e do desejo? Assumindo o legado wittigniano, podemos seguir afirmando que uma lésbica é uma mulher que ama outra mulher quando este amar destrói o sujeito da ação? Ou teremos que admitir uma genealogia implícita que faz possível a negação de ser algo? Se uma se vê na necessidade de esclarecer que não é alguma coisa é por que há uma conexão silenciosa e tácita que é necessária desmentir. De que maneira opera este imaginário sobre a identidade da lésbica?
No final da década de 70, há quase 30 anos, perante um auditório perplexo Wittig concluia sua apresentação assinalando:
“...seria incorreto dizer que nós lésbicas nos casamos, fazemos amor ou vivemos com mulheres, porque o termo mulher só faz sentido nos sistemas de pensamento e nos sistemas econômicos heterossexuais. Nós lésbicas não somos mulheres...”
Foi necessário um tempo antes da frase ser acolhida, e quando já havia sido operadas mudanças na maneira de compreender e abordarmos o sujeito, foi que se tornou possivel sua inteligibilidade, o certo é que depois dos anos 90’s esta não deixa de ser citada e comentada em uma infinidade de ensaios e trabalhos acadêmicos, passando a construir uma peça chave para a teoria feminista de gênero, os estudos de gays e lésbicas e a posterior teoria queer.
Aqui mesmo na Argentina, onde se traduziu pela primeira vez em espanhol, a máxima de Wittig tem sido muito bem recebida por uma parte do movimento de lésbicas e de lésbicas feministas, assim como os estudos de gênero. Ao menos dois dos trabalhos centram seu argumento no marco do pensamento wittigniano: um de Fabiana Tron³ e o outro de Paula Viturro ⁴.
Sem dúvida Wittig e, particularmente, seu ensaio “O Pensamento Hétero”, tem sido frequentemente estudado e a perspectiva que ajudou a moldar uma estratégia discursiva desconstrutiva que ultrapassou os limites do seu próprio lugar de enunciação. É uma verdadeira pena, contudo, sua pouca produtividade no interior do próprio campo feminista, lugar onde foi possível seu nascimento. Seu destino tem tido a mesma sorte que o conceito, irmão, de heterossexualidade compulsória, condenado dentro do pragmatismo das políticas públicas e dos planos de igualdade que anulam toda a possibilidade de pensamento e praxis do rompimento com a heteronormatividade.
Com relação ao feminismo lésbico e à teoria de gênero nota-se a explosão que, junto a outros textos que seguem a mesma linha de autoras como Butler, De Lauretis, Anzaldúa, produziu seu estabelecimento. É impossível não perceber que sua recepção tem sido, sem dúvida, conflituosa e tem produzido, a minha opinião, a princípio, uma ruptura entre posicionamentos mais apegados à tradição identitária que sustenta uma parte do feminismo, e o surgimento de um minoritário porém, forte impulso revisionista da política de identidade no interior do próprio movimento e fora dele. Lamentavelmente os posicionamentos fechados a favor e contra tem impedido, ao meu entender, o desenrolar de um diálogo que permitiria valorizar devidamente as contribuições e os alcances do que foi formulado.
Embora haja um grande grupo de lésbicas feministas para quem a declaração é infeliz, ou no mínimo, incompreensível. Há um grupo minoritário, geralmete dentro ou próximo a academia, para o qual a atribuição é inquestionável.
Como de costume, minha proposta é de nos enxergarmos com a abordagem fora do lugar da oposição ou da fácil aceitação. Particularmente, acho que a perspectiva wittigniana é ousada, audaciosa, provocadora. Creio que o efeito que se consegue vai mais além que a declaração em si e se baseia sobre o olhar, sobre a própria produção discursiva do sujeito. Justamente o que se permite desconstruir são as operações de naturalização no que se refere ao binarismo gênero-desejo.
Em um trabalho anterior me detive em uma citação de Wittig para afirmá-la ao mesmo tempo que a questionava.
Nesta passagem dizia:
“...tenho voltado àquela frase revolucionária de Wittig “as lésbicas não são mulheres”, e tenho chegado a suspeita de que a mesma se constitui em uma afirmação tão libertadora quanto problemática. Por que em todo caso, é o dilema que envolve toda identidade, uma poderia perguntar-se para quem não são e em que contextos de poder e inteligibilidade? Acaso poderíamos dizer que deixar de “atuar” um gênero, um sexo – em caso de que tal coisa seja possível- implica consequentemente uma mudança na maneira como o poder nos constrange?”
Particularmente, sustento que que não há possibilidade de haver um sujeito por fora do discurso e do poder. A operação em si de ter que recorrer a uma negação para definir a lésbica a une irremediavelmente a aquilo que nega. Implica que esta só surge da oposição a sua intenção anterior de negar. A ato de negar é paradoxal por que afirma ao mesmo tempo que nega. Dizer que as lésbicas não são mulheres sinaliza desde que há uma procedencia, um lugar de partida que, ao ser negado, paradoxalmente reinstaura a demarcação de um sujeito mulher. O confirma.
O paradoxo se intitui na aceitação do enunciado. Efetivamente em quem o escuta produz perplexidade. Cada vez que a frase é pronunciada em ambientes onde ainda não foram recebidas, a primeira reação é de surpresa. A provocação de Wittig, alcança seu resultado ao provocar incômodo, estranheza, murmurios. Sua efetividade se consegue ao destruir algo que parecia ser da ordem do natural. Até este momento a lésbica sempre foi “uma mulher que ama outra mulher”. Em algum lugar a ordem binária estava garantida. O binarismo de de gênero estava intacto. A mulher parecia continuar semndo uma mulher que ama aoutra. A princípio pareceria que a identidade não era posta em risco. As lésbicas em todo caso eram duas subalternas brincando com sexo. O sistema, sem dúvida, poderia custar-lhe compreender, mas no final da ferida. Pode ainda desfrutar-la. E repare nas imagens de lésbicas que passam pela censura. A imagem da lésbica da tela, das revistas de entretenimento é realmente patética. Entediante até o cansaço. É o mais anti-erótico para as lésbicas. Sempre parece que falta ação. A imagem sinaliza a gritos a ausência de um homem, a necessidade de que apareça um desejo ativo. A lésbica do mercado está limitada no gênero que a produz e a contém. E está realmente muito mal detida.
O que se passa pela cabeça das pessoas quando se nega esta atribuição aceita e até agora inquestionável? Por que o pânico, por que a distorção? A força da frase de Wittig está em negar o que parece impossível. Todas pertencemos a um gênero (sexo), isto pareceria da ordem da atribuição. Como seria possível compreender que alguém é uma extrangeira de seu sexo (gênero). Para compreender a frase tem que se atravessar primeiramente as paredes do edifício em que habita nossa compreensão de sujeito. A frase funciona como um detonador, uma implosão ao interior da casa dos significantes hegemônicos. Estamos despidas ao ar livre: como nós olhamos, de onde. A sensação de nudez nos faz institivamente tentar nos refugiar. Nos damos conta que ao redor só há restos.
Com estes restos, no entanto, eu lhe asseguro, se tentará reconstruir o que foi perdido. Não exatamente o mesmo, mas tampouco deixa de sê-lo. Se a lésbicas não são mulheres, é por que alguma vez já foram. A fugitiva traz nos pés a terra que habitou. Traz ao novo território as sementes da casa antiga. A afiliação é o ato por meio do qual o poder nos restitui e resigna ao lugar simbólico que nos corresponde. Os afroamericanos não são africanos mas o são. Somos suas hedeiras/os. Suas filhas e filhos, seu sangue. Encarnamos a ameaça de barbárie, a herança do primitivo, o triunfo da força sobre a razão. Nós lésbicas não somos mulheres, mas somos. Somos mulheres justamente para o sistema de pensamento e o sistema econômico heterossexual onde nascemos, em que formos produzidas. A lésbica não pode deixar de encarnar a mulher inventada.
Nós lésbicas de carne e osso saímos às ruas e temos que lidar com esta operação de atribuição de identidade indo mais além da autoatribuição. Vamos para onde vamos, umas mais, umas menos, de acordo com nossos posicionamentos de classe, raça, nacionalidade, nós lésbicas voltamos uma e outra vez à matriz do gênero, estamos presas neste lugar de “mulher” ao qual somos violentamente atribuídas, todas as que assim são chamadas.
A lésbica não é uma mulher, mas, tampouco pode deixar de sê-lo. A lésbica só pode ser produzida dentro da matriz de gênero. Fora dela sua existência é impossível. Nesta matriz se forma, nela se tem produzido seu desejo abjeto. Sabemos também que seu desejo é uma anti desejo que circula como ameaça, cumpre uma função específica dentro das operações destinadas a regular a intituição da heterossexualidade.
A lésbica ao aparecer, ao se fazer visível, em algum lugar se rebela contra aquilo que se tem recomendado encarnar, o lugar da ameaça produtiva. Mas o salto ao qual nos coloca Wittig é o de negar o que parecia impossível. A insolência dá um golpe forte contra todo o previsível. Quando esta consegue constituir a lésbica em uma relegada de seu gênero, quando disse que a lésbica não é uma mulher, não consegue arrancá-la deste lugar de sentido mas consegue armar um sujeito antagônico em si. Assim pois, a lésbica desestabiliza, não só aparecendo, mas também indo de encontro ao discurso que a faz possível. A função de Wittig é criar a conciência do paradoxo no discurso. Ao declarar performativamente instituimos que agora mais que uma mulher que ama outra mulher, deixamos de ser mulher, ao mesnos, tentamos. O desejo se volta contra o próprio sujeito que o produz, e o transforma ao instalar uma diferença com o desejo intituído.
O que é uma lésbica então? A lésbica é um sujeito de ensaio, um ponto de fuga até outro lugar, uma intuição, uma bordelands, uma...estratégia? Uma identidade...de passagem?
A lésbica não é a libertação, é seu projeto. O é na medida em que ela está sujeita à autoaniquilação. Estamos dispostas? A lésbica ao deixar de ser mulher corre o risco de desaparecer.

Traduzido por Mirela Fonseca
Revisado por Paula Cordeiro


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¹ Ponencia presentada en las VIII Jornadas de Historia de las Mujeres, III Congreso Iberoamericano de Estudios de Género, Mesa Género, Sexualidades y Erotismo, Villa Giardino, Córdoba, octubre 2007.
² Wittig, Monique (1978) “La mente hetero”, discurso pronunciado en el Congreso Internacional sobre lenguaje moderno. Traducido por primera vez en español por Alejandra Sardá en:
www.lesbianasalavista.com.ar/lamentehetero.html .
³ “Che ¿vos te diste cuenta que sos una mujer?” Ponencia presentada en el Foro “Situación Legal de las Personas Trans en la Argentina”, septiembre 2003, Buenos Aires.
⁴ “Ficciones de hembras” Ponencia presentada en el Foro “Cuerpo Ineludibles: un diálogo a partir de las sexualidades en América Latina” realizado durante los días 4,5 y 6 de septiembre del 2003 y publicado en un libro homónimo por Josefina Fernandez, Mónica D´Uva y Paula Viturro (comps). Buenos Aires, Ediciones Ají de Pollo, 2004.
No ser mujer o la disyuntiva lesbiana

Por Yuderkys Espinosa Miñoso

Hace aproximadamente unas tres décadas que Monique Wittig sentenció “las lesbianas no somos mujeres” produciendo un movimiento cuyas resonancias nos llegan hasta hoy día. Si bien el destino de la frase recorrió diferentes tránsitos y recepciones a favor o en contra, lo cierto es que la misma, al tiempo que definía una identidad por oposición más que clausurar, inauguró un debate imposible de ser clausurado. Porque si las lesbianas no son mujeres una podría preguntarse a seguidas, qué son. Pregunta para la que podrían existir no pocas respuestas, ni sencillas, al menos si se asume y se sigue la tradición deconstructiva asumida por Wittig.

Este trabajo se centra, en un primer momento, en la frase de Wittig para intentar re mirar su intencionalidad política, su apuesta, y sus repercusiones más allá del sujeto lesbiano mismo; así mismo, intenta aportar a un análisis crítico que indague y de cuenta de sus limitaciones. Hay aquí algunas preguntas claves que intentaré dar respuesta: ¿De qué forma y por qué en la afirmación de Wittig se mantienen entrecruzadas una historia del género y del deseo? Asumiendo el legado wittiagniano ¿Podemos seguir afirmando que una lesbiana es una mujer que ama a otra mujer cuando en ese amar explota el sujeto de la acción? ¿O tendremos que admitir una genealogía implícita que hace posible la negación de ser algo? Si una se ve en la necesidad de aclarar que una no es una cosa es porque hay una vinculación solapada y tácita que es necesario desmentir. ¿De qué manera opera este imaginario sobre la identidad de la lesbiana?


A finales de la década del 70, hace casi 30 años, ante un auditorio perplejo Wittig concluía su presentación señalando:

“…sería incorrecto decir que las lesbianas nos asociamos, hacemos el amor o vivimos con mujeres, porque el término mujer tiene sentido solo en los sistemas de pensamiento y en los sistemas económicos heterosexuales. Las lesbianas no somos mujeres…”

Si bien la frase necesitó un tiempo antes de ser acogida cuando ya se habían operado cambios en la manera de comprender y acercarnos al sujeto que hacían posible su inteligibilidad, lo cierto es que desde los 90´s ésta no ha dejado de ser citada y comentada en una infinidad de ensayos y trabajos académicos, pasando a constituir una pieza clave para la teoría feminista de género, los estudios de gays y lesbianas, y la posterior teoría queer.

Acá mismo en la Argentina, en dónde se la tradujo por primera vez al español, la máxima de Wittig ha sido muy bien recibida por una parte del movimiento de lesbianas y de lesbianas feministas, así como por los estudios de género. Al menos dos de estos trabajos centran su argumento en el marco de pensamiento Wittigniano: uno es de Fabiana Tron y el otro de Paula Viturro .

Sin lugar a dudas Wittig y, particularmente, su ensayo “La Mente Hetero” ha sido frecuentemente leído y la perspectiva que ayudó a conformar desde una estrategia discursiva deconstructiva sobrepasó los límites de su propio lugar de enunciación. Es una verdadera pena, sin embargo, su poca productividad al interior del propio campo feminista, lugar desde el cual fue posible su nacimiento. Su destino ha corrido la misma suerte que el concepto, hermano, de heterosexualidad obligatoria, desterrado dentro del pragmatismo de las políticas públicas y los planes de igualdad que anulan toda posibilidad de pensamiento y praxis disruptiva.

En cuanto al feminismo lesbiano y la teoría de género habría que señalar la explosión que junto a otros textos en el mismo tenor de autoras como Butler, De Lauretis, Anzaldúa, produjo su instalación. Es imposible obviar que su recepción ha sido sin embargo conflictiva y ha producido, a mi entender tempranamente, una ruptura entre posicionamientos más apegados a la tradición identitaria que sostiene una parte del feminismo, y la irrupción de un minoritario pero fuerte impulso revisionista de la política de identidad al interior del propio movimiento y fuera de él. Lamentablemente los posicionamientos cerrados a favor y en contra han impedido, a mi entender, desarrollar un diálogo que permitiera valorar debidamente los aportes y los alcances del enunciado. Mientras, hay un grupo mayoritario de lesbianas feministas para quién el enunciado es infeliz o al menos, incomprensible. Hay un grupo minoritario, generalmente dentro o cercano a la academia, para el cual la adscripción es incuestionable.

Como es mi costumbre, mi propuesta es la de vernosla con el planteamiento fuera del lugar de la oposición o la aceptación fácil. Particularmente creo que la perspectiva wittigniana es audaz, arriesgada y provocadora. Creo que el efecto que logra va más allá del enunciado mismo y se ancla sobre el lugar de la mirada, sobre la operación misma de producción discursiva del sujeto. Justamente lo que permite desmantelar son las operaciones de naturalización en las que se ancla el binarismo de género-deseo.

En un trabajo anterior me he detenido en la cita de Wittig para afirmarla al tiempo que la cuestionaba.

En esa oportunidad señalaba que:

“…he vuelto sobre aquella frase revolucionara de Monique Wittig “las lesbianas no son mujeres”, y he llegado a la sospecha de que la misma se constituye en una afirmación tan liberadora como tramposa. Por que en todo caso, y es el dilema que encierra toda identidad, una tendría que preguntarse ¿Para quiénes no lo son y en qué contextos de poder e inteligibilidad? ¿Acaso podríamos decir que dejar de “actuar” un género, un sexo –en caso de que tal cosa sea posible- implica consecuentemente un cambio en la manera cómo el poder nos constriñe?”

Particularmente sostengo que no hay posibilidad de sujeto por fuera del discurso y del poder. La operación misma de tener que recurrir a una negación para definir a la lesbiana la une irremediablemente a aquello que niega. Implica que ésta sólo surge de la oposición a su anterior que intenta negar. La operación de negar es paradójica porque afirma al mismo tiempo que se niega algo. Decir que las lesbianas no son mujeres señala desde ya una procedencia, un lugar de partida que, al ser negado, paradójicamente reinstaura la operación de demarcación de un sujeto mujer. Lo reconfirma.

La paradoja se instituye en la recepción del enunciado. Efectivamente en quien lo escucha produce perplejidad. Cada vez que la frase la he pronunciado en ambientes donde aún no ha sido recibida, la reacción primera es la de la sorpresa. La provocación de Wittig, logra su resultado al provocar incomodidad, extrañeza, tartamudeo. Su efectividad se logra al desmantelar algo que parecía del orden de lo natural. Hasta ese momento lesbiana siempre fue “una mujer que ama a otra mujer”. En algún lugar el orden binario estaba garantizado. El binarismo de género se hallaba intacto. La mujer parecería seguir siendo una mujer aunque amara a otra. En principio parecería que la identidad no era puesta en riesgo. Las lesbianas en todo caso eran dos subalternas jugando al sexo. Al sistema sin lugar a dudas le costaba entenderlo pero al final podía con la herida. Puede llegar incluso a gozar con ella. Y sino fíjense en las imágenes de lesbianas que logran pasar la censura. La imagen de la lesbiana de la tele, de las revistas de entretenimiento es realmente patética. Aburre hasta el cansancio. Es lo más anti erótico para las lesbianas. Siempre parece que hace falta acción. La imagen señala a gritos la ausencia del hombre, la necesidad de que aparezca un deseo activo. La lesbiana del mercado queda encerrada en el género que la produce y la contiene. Y queda realmente muy mal parada.

¿Qué pasa en la cara de la gente cuando se niega esta adscripción aceptada y hasta ahora incuestionable? ¿Por qué el pánico, por qué la desfiguración? La fuerza de la frase de Wittig está en negar lo que parece imposible. Todas pertenecemos a un género (sexo), esto parecería del orden de lo dado. Cómo sería posible comprender que alguien es una extranjera de su sexo (género). Para comprender la frase hay que atravesar primeramente las paredes del edificio en el que habita nuestra comprensión del sujeto. La frase funciona como un detonante, una implosión al interior de la casa de los significantes hegemónicos. Desnudas quedamos a la intemperie: con qué miramos, desde dónde. La sensación de desnudes nos hace instintivamente intentar refugiarnos. Nos damos cuenta que alrededor solo quedan restos.

Con estos restos, sin embargo, les aseguro, se intentará recomponer lo perdido. No es exactamente lo mismo, pero tampoco deja de serlo. Si las lesbianas no son mujeres, es por que alguna vez lo fueron. La prófuga trae en los pies la tierra que habitó. Trae al nuevo territorio las cimientes de la casa antigua. La afiliación es el acto por medio del cual el poder nos reinstituye y reasigna al lugar simbólico que nos corresponde. Los afroamericanos no son africanos pero lo son. Somos sus herederos. Su hijas e hijos, su sangre. Encarnamos la amenaza de la barbarie, la herencia de lo primitivo, el triunfo de la fuerza sobre la razón. Las lesbianas no somos mujeres, pero lo somos. Lo somos justamente para el sistema de pensamiento y el sistema económico heterosexual en el que nacimos, en el que fuimos producidas. La lesbiana no puede dejar de encarnar a la mujer mítica.

Las lesbianas de carne y hueso salimos cada día a la calle y tenemos que vernosla con esta operación de asignación de identidad más allá de la autoasignación. Vayamos a dónde vayamos, unas más, unas menos, de acuerdo a nuestros posicionamientos de clase, raza, procedencia, las lesbianas somos vueltas una y otra vez a la matriz de genero, quedamos entrampadas en ese lugar de “mujer” al cual somos violentamente adscriptas todas las que así somos llamadas.

La lesbiana no es una mujer pero tampoco puede dejar de serlo. La lesbiana solo es posible de ser producida dentro de la matriz de género. Fuera de ella su existencia es imposible. En esta matriz se forma, en ella se ha producido su deseo abyecto. Sabemos también que su deseo es un anti deseo que circula como amenaza, cumple una función específica dentro de las operaciones destinadas a regular la institución de la heterosexualidad.

La lesbiana al aparecer, al hacerse visible, en algún lugar se rebela contra aquello que se le ha encomendado encarnar, el lugar de la amenaza productiva. Pero el salto ante el cual nos coloca Wittig es el de negar lo que parecería imposible. La insolencia asesta un golpe fuerte contra todo lo previsible. Cuando esta logra constituir a la lesbiana en una desheredada de su género, cuando dice que la lesbiana no es una mujer, no logra descuajarla de este lugar de sentido pero logra armar un sujeto antagonista de sí. Así pues, la lesbiana desestabiliza, pues, no sólo apareciendo, sino yendo en contra del discurso que la hace posible. La operación de Wittig es instaurar la conciencia de la paradoja en el discurso. Al enunciarlo performativamente instituye y de ahora en más que una mujer que ama a otra mujer, deja de serlo, o, al menos, lo intenta. El deseo se vuelve contra el propio sujeto que lo produce, y lo transforma al instalar una diferencia con el deseo instituido.

Qué es una lesbiana entonces? La lesbiana es un sujeto de ensayo, un punto de fuga hacia otro lugar, una intuición, una borderlands, una…estrategia? Una identidad… de paso?

La lesbiana no es una liberación, pero es su proyecto. Lo es en la medida en que ella esta dispuesta a la autoaniquilación. ¿Estamos dispuestas? La lesbiana al dejar de ser mujer corre el riesgo de desaparecer ella misma.


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¹ Ponencia presentada en las VIII Jornadas de Historia de las Mujeres, III Congreso Iberoamericano de Estudios de Género, Mesa Género, Sexualidades y Erotismo, Villa Giardino, Córdoba, octubre 2007.
² Wittig, Monique (1978) “La mente hetero”, discurso pronunciado en el Congreso Internacional sobre lenguaje moderno. Traducido por primera vez en español por Alejandra Sardá en:
www.lesbianasalavista.com.ar/lamentehetero.html .
³ “Che ¿vos te diste cuenta que sos una mujer?” Ponencia presentada en el Foro “Situación Legal de las Personas Trans en la Argentina”, septiembre 2003, Buenos Aires.
⁴ “Ficciones de hembras” Ponencia presentada en el Foro “Cuerpo Ineludibles: un diálogo a partir de las sexualidades en América Latina” realizado durante los días 4,5 y 6 de septiembre del 2003 y publicado en un libro homónimo por Josefina Fernandez, Mónica D´Uva y Paula Viturro (comps). Buenos Aires, Ediciones Ají de Pollo, 2004.
Ninguém nasce mulher
Monique Wittig


O enfoque feminista/materialista da opressão das mulheres acaba com a idéia de que as mulheres são um “grupo natural”: “um grupo racial de um tipo especial, um grupo concebido como natural, percebido como um grupo de homens materialmente específicos em seus corpos”.
O que a análise consegue ao nível das idéias, a prática torna atual ao nível dos fatos: por sua própria existência, a sociedade lésbica destrói o fato artificial (social) que classifica as mulheres como “um grupo natural”. Uma sociedade lésbica revela que a divisão com relação aos homens, dos quais as mulheres tem sido objeto, é política e mostra que temos sido ideologicamente reconstituídas como um “grupo natural”. No caso das mulheres, a ideologia vai longe já que nossos corpos, assim como nossas mentes, são o produto desta manipulação. Em nossas mentes e em nossos corpos, somos levadas a corresponder, característica a característica, a idéia da natureza que foi estabelecida para nós; tão pervertida que nosso corpo deformado é o que eles chamam “natural”, o que supostamente existia antes da opressão; tão distorcido que no final das contas a opressão parece ser uma conseqüência dessa “natureza”, dentro de nós mesmas (uma natureza que é somente uma idéia). O que uma análise materialista faz com base no raciocínio, uma sociedade lésbica cumpre praticamente: não apenas não existe um grupo natural chamado mulher (nós lésbicas somos a prova disso), mas, como individuas, também questionamos “mulher” que, para nós—como para Simone de Beauvoir— é apenas um mito. Ela afirmou: “Não se nasce, mas se faz mulher. Não tem nenhum destino biológico, psicológico ou econômico que determine o papel que as mulheres representam na sociedade: é a civilização como um todo a que produz esta criatura intermediária entre macho e eunuco, que é descrita como feminina”.
Contudo, a maioria das feministas e lésbicas-feministas na América, e em outras partes, ainda consideram que a base da opressão das mulheres é biológica e histórica. Algumas delas pretendem encontrar suas raízes em Simone de Beauvoir. A crença no matriarcado e numa “pré-história” quando as mulheres criaram a civilização (a causa de uma predisposição biológica), enquanto os homens toscos e brutais caçavam, é simétrica à interpretação biológica da história elaborada, até hoje, pela classe dos homens. Ainda é o mesmo método de buscar nos homens e nas mulheres uma explicação biológica para sua divisão, excluindo os fatos sociais. Para mim, isso não poderia nunca constituir uma análise lésbica da opressão das mulheres porque se supõe que a base de nossa sociedade ou de seu início, está na heterossexualidade. O matriarcado não é menos heterossexual que o patriarcado: muda apenas o sexo do opressor. Ademais, não somente esta concepção está prisioneira das categorias do sexo (homem/mulher), senão que se aferra à idéia de que a capacidade de dar a luz (ou seja, a biologia) é o que define a uma mulher. Ainda que os fatos práticos e os modos de vida contradigam essa teoria na sociedade lésbica, há lésbicas que dizem que “as mulheres e os homens são espécies distintas ou raças: os homens são biologicamente inferiores às mulheres; a violência dos homens é uma inevitabilidade biológica”.

Ao fazer isso, ao admitir que há uma divisão “natural” entre mulheres e homens, naturalizamos a história, assumimos que “homens” e “mulheres” sempre existiram e sempre existirão. Não apenas naturalizamos a história, mas também, em conseqüência, naturalizamos o fenômeno que expressa nossa opressão, tornando a mudança impossível. Por exemplo, não se considera a gravidez como uma produção forçada, mas como um processo “natural”, “biológico”, esquecendo que em nossas sociedades a natalidade é planejada (demografia), esquecendo que nós mesmas somos programadas para produzir progênie, enquanto que esta é a única atividade social, “com exceção da guerra”, que implica tanto perigo de morte. Assim, enquanto sejamos “incapazes de abandonar, por vontade ou impulso, um compromisso de toda a vida e de séculos, de produzir crianças como o ato criativo feminino”, ganhar o controle sobre essa produção significará muito mais que o simples controle dos meios materiais dela: as mulheres terão que abstrair-se da definição “mulher” que lhes é imposta.

Uma visão materialista mostra que o que nós consideramos a causa e a origem da opressão é somente um mito imposto pelo opressor: o “mito da mulher” e suas manifestações e os efeitos materiais na consciência apropriada e o apropriado corpo das mulheres; ainda assim, esse mito não antecede à opressão. Colette Guillaumin demonstrou que antes da realidade sócio-econômica da escravidão negra, o conceito de raça não existia, ou pelo menos, não tinha seu significado moderno, uma vez que estava aplicado à linhagem das famílias. Entretanto, hoje, a raça, tal como o sexo, é entendida como um “fato imediato”, “sensível”, "características físicas" que pertencem a uma ordem natural. Mas, o que nós acreditamos que é uma percepção direta e física, não é mais do que uma construção sofisticada e mítica, uma “formação imaginária” que reinterpreta traços físicos (em si mesmos neutros como quaisquer outros, por marcados pelo sistema social) por meio da rede de relações nas quais elas são vistas. (Elas são vistas como negras, por isso são; elas são olhadas como mulheres, por isso são mulheres. Mas, antes que sejam vistas dessa maneira, elas tiveram que ser feitas assim). As lésbicas devem recordar e admitir sempre como ser “mulher” era tão “anti-natural”, totalmente opressivo e destrutivo para nós nos velhos tempos, antes do movimento de libertação das mulheres.

Era uma construção política e aquelas que resistiam eram acusadas de não ser mulheres “verdadeiras”. Mas então ficávamos orgulhosas disso, porque na acusação estava já algo como uma sombra de triunfo: o consentimento, pelo opressor, de que “mulheres” não era um conceito simples (para ser uma, era necessário ser uma “verdadeira”). Ao mesmo tempo, éramos acusadas de querer ser homens. Hoje, esta dupla acusação foi retomada com entusiasmo no contexto do movimento de libertação das mulheres, por algumas feministas e também, por desgraça, por algumas lésbicas cujo objetivo político parece tornar-se cada vez mais “femininas”. Porém recusar ser uma mulher, sem dúvida, não significa ter que ser um homem. Ademais, se tomamos como exemplo o perfeito “butch” (hiper masculino) —o exemplo clássico que provoca mais horror—a quem Proust chamou uma mulher/homem, em que difere sua alienação de alguém que quer tornar-se mulher? São gêmeos siameses. Pelo menos, para uma mulher, querer ser um homem significa que escapou a sua programação inicial. Mas, ainda se ela, com todas suas forças, se esforça por consegui-lo, não pode ser um homem, porque isso lhe exigiria ter, não apenas uma aparência externa de homem, mas também uma consciência de homem, a consciência de alguém que dispõe, por direito, de dois—se não for mais—escravos “naturais” durante seu tempo de vida. Isso é impossível, e uma característica da opressão das lésbicas consiste, precisamente, em colocar à mulheres por fora de nosso alcance, já que as mulheres pertencem aos homens.

Assim, uma lésbica tem que ser qualquer outra coisa, uma não-mulher, um não-homem, um produto da sociedade e não da natureza, porque não existe natureza na sociedade.
O recurso em converter-se (ou manter-se) heterossexual sempre significou rechaçar a conversão em um homem ou uma mulher, conscientemente ou não. Para uma lésbica isso vai mais longe que o recurso do papel “mulher”, é o recurso do poder econômico, ideológico e político de um homem. Isto, nós lésbicas, e também não-lésbicas, já sabíamos antes. Isto, nós lésbicas e também não-lésbicas, já sabíamos desde o inicio dos movimentos feministas e lésbicos. Contudo, como ressalta Andrea Dworkin, muitas lésbicas recentemente “tentaram transformar a própria ideologia que nos escravizou em uma celebração dinâmica, religiosa, psicologicamente coercitiva do potencial biológico feminino”. Mesmo assim, algumas avenidas dos movimentos feminista e lésbico conduzem de novo ao mito da mulher criada pelo homem, especialmente para nós, e com ele nos afundamos outra vez em um grupo natural. Depois que nos posicionamos a favor de uma sociedade sem sexos, agora nos encontramos presas no familiar beco sem saída de “ser mulher é maravilhoso”. Simone de Beauvoir sublinhou particularmente a falsa consciência que consiste em selecionar entre as características do mito (que as mulheres são diferentes dos homens) aquelas que se parecem bem usando-as como definição para mulher. O que o conceito “mulher é maravilhoso” cumpre é instituir, para definir mulher, as melhores características (melhores de acordo com quem?) que a opressão nos garantiu, sem questionar radicalmente as categorias “homem”e “mulher”, que são categorias políticas e não fatos naturais. Isto nos coloca na posição de lutar dentro da classe “mulheres”, não fazem as outras classes, pela desaparição de nossa classe, mas para defender as “mulheres” e seu fortalecimento. Nos conduz a desenvolver com complacência “novas” teorias sobre nossa especificidades: assim, chamamos a nossa passividade “não-violência”, quando nossa luta mais importante e emergente é combater nossa passividade (nosso medo, justificado). A ambigüidade da palavra “feminista” resume toda a situação. Que significa “feminista”? Feminismo é formado pelas palavras “fêmea”, mulher, e significa: alguém que luta pelas mulheres. Para muitas de nós, significa uma luta pelas mulheres e por sua defesa—pelo mito, portanto, e seu fortalecimento. Mas porque foi escolhida a palavra ‘feminista' se é tão ambígua? Escolhemos chamar-nos feministas há dez anos, não para apoiar ou fortalecer o mito do que é ser mulher, não para nos identificarmos com a definição do nosso opressor, mas para afirmar que nosso movimento contava com uma história e para destacar esse laço político com o velho movimento feminista.

Assim, é este movimento que podemos colocar em questão pelo significado que deu ao feminismo. Ocorre que o feminismo do século passado não é capaz de solucionar suas contradições nos temas da natureza/cultura, mulher/sociedade. As mulheres começaram a lutar por si mesmas como um grupo e consideravam acertadamente que compartilhavam traços comuns como resultado da opressão. Mas, para elas, estes traços eram mais naturais e biológicos que sociais. Elas foram tão longe como adotar a teoria darwinista da evolução. No entanto, não acreditavam, como Darwin, “que as mulheres eram menos desenvolvidas que os homens, mas acreditava, sim, que a natureza tanto do macho como da fêmea haviam divergido no curso do processo evolutivo e que a sociedade em geral refletia esta polarização”. “O fracasso das primeiras feministas foi que somente atacaram a idéia Darwinista da inferioridade da mulher, mas aceitaram os fundamentos dessa idéia-ou seja, a visão da mulher como “única”. E, finalmente, foram as mulheres estudantes —e não as feministas—que acabaram com esta teoria. Mas, as primeiras feministas fracassaram ao não olhar para a história como um processo dinâmico que se desenvolveu com base em conflitos de interesses. Mais, elas ainda acreditavam, como os homens, que a causa (origem) de sua opressão estava dentro de si próprias. E, por isso, depois de alguns triunfos inacreditáveis, as feministas se encontraram frente a um impasse, sem aparentes razões para lutar. Elas sustentavam o princípio ideológico da “equidade na diferença”, uma idéia que hoje está renascendo. Elas caíram na trama que hoje nos ameaça outra vez: o mito de mulher.

Assim, é nossa tarefa histórica, e somente nossa, definir em termos materialistas o que é opressão, para tornar evidente que as mulheres são uma classe, o que significa que as categorias “homem” e “mulher” são categorias políticas e econômicas e não eternas. Nossa luta tenta fazer desaparecer homens como classe, não como um genocídio, mas com a luta política. Quando a classe “homens” desaparece, “mulheres” como classe também desaparecerá, porque não há escravos sem senhores. Nossa primeira tarefa, ao que nos parece, é sempre desassociar por completo “mulheres” (a classe dentro da qual lutamos) e “mulher”, o mito. Porque “mulher” não existe para nós: é somente uma formação imaginária, enquanto mulheres é produto de uma relação social. Sentimos fortemente isso quando, em todas as partes, rejeitamos ser chamadas “movimento de liberação da mulher”. Mais ainda, temos que destruir o mito dentro e fora de nós. Mulher não é cada uma de nós, mas a formação política e ideológica que nega “mulheres” (o produto de uma relação de exploração). “Mulher” existe para confundir-nos, para ocultar a realidade “mulheres”. Para que sejamos conscientes de sermos uma classe, e para nos convertermos em uma classe, temos primeiramente que matar o mito da “mulher”, incluindo seus traços mais sedutores (penso em Virginia Woolf quando ela diz que a primeira tarefa de uma mulher escritora é “matar o anjo da casa”). Mas, para que sejamos uma classe, não temos que aniquilar nossa individualidade e, como nenhum individuo pode ser reduzido a sua opressão, somos também confrontadas com a necessidade histórica de constituirmos a nós mesmas como o sujeito individual de nossa história também. Creio que esta é a razão porque todas essas tentativas de dar “novas” definições à mulher estão florescendo agora.
O que está em jogo (e, claro, não somente para as mulheres) é uma definição individual, assim como uma definição de classe. Porque, quando se admite a opressão, necessita saber e experimentar o fato de que pode ser seu próprio sujeito (em contrapartida a um objeto da opressão); que uma pode converter-se em alguém. Não obstante a opressão, que tem uma identidade própria. Não há luta possível para alguém privado de uma identidade; carece de uma motivação interna para lutar, porque, não obstante só eu posso lutar com outros, luto sobretudo por mim mesma.

A questão do sujeito individual é históricamente uma questão difícil para todos. O marxismo, último avatar do materialismo, a ciência que nos formou politicamente, não quer ouvir nada sobre o “sujeito”. O marxismo rejeitou o sujeito transcendental, o sujeito como constitutivo do conhecimento, a “pura” consciência. Todo ser que pensa por si mesmo, previamente a qualquer experiência, acabou no lixo da história, porque pretendia existir acima da matéria, antes da matéria, e necessitava Deus, espírito, ou alma para existir dessa maneira. Isto é o que se chama “idealismo”. Quanto aos indivíduos, eles são somente o produto de relações sociais e, por isso, sua consciência somente pode ser “alienada” (Marx, na Ideologia Alemã, diz, precisamente, que os indivíduos da classe dominante também são alienados, sendo eles mesmos os produtores diretos das idéias que alienam as classes oprimidas por eles. Mas, como tiram vantagens óbvias de sua própria alienação, eles podem suportá-la sem muito sofrimento).
A consciência de classe existe, mas é uma consciência que não se refere a um sujeito particular, exceto enquanto participa em condições gerais de exploração, ao mesmo tempo que os outros sujeitos de sua classe, todos compartilhando a mesma consciência. Quanto aos problemas práticos de classe — afora os problemas de classe tradicionalmente definidos— que é possível encontrar (por exemplo, problemas sexuais), eles foram considerados problemas “burgueses” que desapareceriam chegado o triunfo final da luta de classes. “Individualista”, “subjetivista”, “pequeno burguês”, estas foram as etiquetas aplicadas a qualquer pessoa que expressasse problemas que não se pudessem reduzir à “luta de classes” em si mesma.

Assim, o marxismo negou aos integrantes das classes oprimidas o atributo de sujeitos. Ao fazer isto, o marxismo, por causa do poder político e ideológico que esta “ciência revolucionária” exercia sem mediações sobre o movimento operário e todos os outros grupos políticos, impediu que todas as categorias de pessoas oprimidas se constituíssem historicamente como sujeitos (sujeitos de sua luta, por exemplo). Isto significa que as “massas” não lutavam por elas mesmas mas pelo partido ou suas organizações. E quando uma transformação econômica ocorreu (fim da propriedade privada, constituição do estado socialista), nenhuma mudança revolucionária teve lugar na nova sociedade, porque as próprias pessoas, não haviam mudado.

Para as mulheres, o marxismo teve dois resultados. Tornou-lhes impossível adquirir a consciência de que eram uma classe e por tanto de constituir-se como uma classe por muito tempo, abandonando a relação “mulher/homem” fora da ordem social, fazendo dessa uma relação natural, sem dúvida, para os marxistas, a única relação vista desta maneira, junto com a relação entre mulheres e filhos, e finalmente ocultando o conflito de classe entre homem e mulher atrás de uma divisão natural do trabalho (A Ideologia Alemã). Isso concerne ao nível teórico (ideológico). No nível prático, Lênin, o partido, todos os partidos comunistas até hoje, incluindo a todos os grupos políticos mais radicais, sempre reagiram contra qualquer tentativa das mulheres para refletir e formar grupos baseados em seu próprio problema de classe, com acusações de divisionismo. Ao nos unir nós as mulheres, dividimos a força do povo. Isso significa que, para os marxistas, as mulheres pertencem seja à classe ou à classe operária, ou em outras palavras, aos homens dessas classes. Mais ainda, a teoria marxista não concebe que as mulheres, como a outras classes de pessoas oprimidas, que se constituam em sujeitos históricos, porque o marxismo não leva em consideração que uma classe também consiste em indivíduos, um por um. A consciência de classe não é suficiente. Temos que tentar entender filosoficamente (politicamente) esses conceitos de “sujeito” e “consciência de classe” e como funcionam em relação com a nossa história. Quando descobrimos que as mulheres são objetos de opressão e de apropriação, no momento exato em que nos tornamos capazes de reconhecer isso, nos convertemos em sujeitos no sentido de sujeitos cognitivos, através de uma operação de abstração. A consciência da opressão não é apenas uma reação a (lutar contra) opressão. É também toda a reavaliação conceitual do mundo social, sua total re-organização com novos conceitos, do ponto de vista da opressão. É o que eu chamaria a ciência da opressão criada pelos oprimidos. Esta operação de entender a realidade tem que ser empreendida por cada uma de nós: podemos chamá-la uma prática subjetiva e cognitiva. O movimento para frente e para trás entre os níveis da realidade (a realidade conceitual e a realidade material da opressão, ambas as realidades sociais) se consegue através da linguagem.

Somos nós que historicamente temos que realizar essa tarefa de definir o sujeito individual em termos materialistas. Seguramente isso parece uma impossibilidade, porque o materialismo e a subjetividade sempre foram reciprocamente excludentes. Entretanto, e em lugar de perder as esperanças de chegar a entender alguma vez, temos que reconhecer a necessidade de alcançar a subjetividade no abandono por muitas de nós do mito da “mulher” (que é só uma armadilha que nos detém). Esta necessidade real de cada uma existir como individuo, e também como membra de uma classe, é talvez a primeira condição para que se consuma uma revolução, sem a qual não há luta real ou transformação. Mas o oposto também é verdadeiro; sem classe e consciência de classe não há verdadeiros sujeitos, somente indivíduos alienados.

Para as mulheres, responder à questão do sujeito individual em termos materialistas consiste, em primeiro lugar, em mostrar, como o fizeram as feministas e as lésbicas, que os problemas supostamente “subjetivos”, “individuais” e “privados” são, de fato, problemas sociais, problemas de classe; que a sexualidade não é, para as mulheres, uma expressão individual e subjetiva, mas uma instituição social de violência. Mas uma vez que tenhamos mostrado que todos nossos problemas supostamente pessoais são, de fato, problemas de classe, ainda nos restará responder ao assunto de toda mulher singular —não do mito, mas de cada uma de nós. Neste ponto, digamos que uma nova e subjetiva definição para toda a humanidade pode ser encontrada mais além das categorias de sexo (mulher e homem) e que o surgimento de sujeitos individuais exige destruir primeiro as categorias de sexo, eliminando seu uso, e rejeitando todas as ciências que ainda as utilizam como seus fundamentos (praticamente todas as ciências).

Destruir “mulher” não significa que nosso propósito consiste na destruição física, não significa destruir o lesbianismo simultaneamente com as categorias de sexo, pois o lesbianismo oferece, de momento, a única forma social na qual podemos viver livremente. Lesbiano é o único conceito que conheço que está mais além das categorias de sexo (mulher e homem), pois o sujeito designado (lesbiano) não é uma mulher, nem economicamente, nem politicamente, nem ideologicamente. Pois o que faz uma mulher é uma relação social específica com um homem, uma relação que chamamos servidão, uma relação que implica uma obrigação pessoal e física e também econômica (“residência obrigatória”, trabalhos domésticos, deveres conjugais, produção ilimitada de filhos, etc.), uma relação a qual as lésbicas escapam quando rejeitam tornar-se o seguir sendo heterossexuais. Somos prófugas de nossa classe, da mesma maneira que os escravos americanos fugitivos o eram quando se escapavam da escravidão e se libertavam. Para nós esta é uma necessidade absoluta; nossa sobrevivência exige que contribuamos com toda nossa força para destruir a classe das mulheres na qual os homens se apropriam. Isto só pode ser alcançado pela destruição da heterossexualidade como um sistema social baseado na opressão das mulheres pelos homens e que produz a doutrina da diferença entre os sexos para justificar essa opressão.
Uma legião de lésbicas sexualizando a política

Por Yuderkys Espinosa Miñoso


Um professor me disse uma vez que, normalmente, a gente que tem uma postura de tolerância a gays e lésbicas tende a justificar sua atitude assinalando que “ exceto na cama, todos somos iguais”. Mas, na verdade, disse convencido,que é o contrário: talvez na cama seja um dos lugares onde mais nos parecemos. A afirmação me comoveu por que tem a ousadia de dar um golpe no senso-comum bem intencionado, que tem a pretensão de limpar a “diferença” daquilo que é ameaçador.
Eu não sei, na verdade, se é tão certo isto de que nós somos iguais na cama- talvez às vezes sim, às vezes não- mas me parece que a sabedoria da declaração está em assinalar que “ser” lésbica- ou “estar sendo” de alguma maneira- não consiste em definir simplesmente uma prática ou uma orientação sexual, digamos que não se trata só de com quem se deita, como se isso fosse um “aspecto” de nossa vida que não "contaminara" o resto. Para dizer de forma simples, digamos que a lésbica não é só lésbica na cama, ela o é a todo tempo- ou deveria ser, a princípio.
Ocupar uma identidade lésbica refere-se, portanto, a uma forma de se mostrar no mundo, a uma forma de experimentar que nos torna parte de uma comunidade específica, um coletivo com necessidades, interesses, espaços compartilhados. Além disso, sendo que esta identidade, esta forma de viver a vida é produto e efeito de uma forma específica de opressão, a lésbica é sobretudo uma identidade política. Não podemos, de fato, separar o aparecimento da identidade lésbica do que seria a aparição desta como sujeito político. Somente com a mudança substancial na forma de se compreender a sexualidade, de maneira que esta passou a ocupar um lugar central nas formas de cidadania, foi possível a revelação de um sujeito público no sentido da ação, e portanto de identidade, dada desde a adesão a uma sexualidade não normativa. Digamos que chegar a compreender que a sexualidade não se refere a um âmbito particular da vida, nem pertence, como havíamos nos acostumado antes a pensar, ao campo do privado, foi a condição para que explodissem novas formas de subjetividade, como a da lésbica, ancoradas na sexualidade como eixo articulador do ser e o estar no mundo. Esta nova formulação da sexualidade como campo minado pelo poder, e portanto, profundamente político, situou perfeitamente as lésbicas e outras sexualidades dissidentes no espaço público, atraindo a partir disso um diálogo e uma luta com a sexualidade normativa.
Gosto de observar este ponto para explicitar a política lésbica como uma ação que transcende a mera existência do direito à intimidade e à realização pessoal, e cujos objetivos, não podem limitar-se à reivindicação dos direitos à diferença ou o direito de “ser”, como parece que vem se moldando ultimamente. Como já me expressei em outras oportunidades, nós lésbicas, não deveríamos nos permitir cair na armadilha de uma política particularista na exigência de um elementar direito à inclusão e ao reconhecimento. Não por que isto não seja válido, como, de fato, o é para um setor do movimento, mas porque nossa luta não pode deixar de lidar com o regime heteronormativo como um sistema de poder que nos engloba a todxs e é devido ao qual que se opera a inexistência e a invisibilidade das lésbicas. Esquecer que nós lésbicas (in)existimos graças à existência de um regime de heterossexualidade obrigatória, e onde junto a gays, travestis, trans somos o reverso de sujeito reprodutivo desejado e projetado, esquecer que nossa ação não pode deixar de enfrentar a este sujeito da normatividade, que não podemos deixar de questioná-lo e tornar nossa ação invisível, retirar sua maior potência libertadora.
Nestes dias, próximo à celebração de Primeiro Encontro de Lésbicas da Argentina, onde lésbicas de todas as regiões do país vem, pela primeira vez a um encontro deste tipo, quero aproveitar para reafirmar o caráter necessariamente político deste encontro. Não poderia ser de outro modo: lésbicas celebrando sua existência deveria ser a metáfora da alegria do fim por chegar. As lésbicas unidas não teriam outro objetivo que não fosse a destruição do regime que as torna impossível e que domina todas as mulheres de forma igual: a instituição da heterossexualidade obrigatória. Esta batalha nos torna irmãs do resto das mortais.


Traduzido por Mirela Fonseca
Revisado por Paula Regina de Oliveira Cordeiro
Una legión de lesbianas sexualizando la política

Por Yuderkys Espinosa Miñoso


Un profesor me dijo una vez que por lo regular la gente que tiene una postura de tolerancia a gays y lesbianas tienden a justificar su postura señalando que “excepto en la cama todos somos iguales”. Pero la verdad, dijo convencido, es lo contrario: quizás la cama es uno de los lugares en donde más nos parecemos. La afirmación me conmovió porque tiene la osadía de dar un puñetazo al sentido común bien intencionado, que intenta a toda costa limpiar la “diferencia” de aquello que la vuelve amenazante.

Yo no se, de hecho, si es tan cierto esto de que somos iguales en la cama –quizás a veces sí quizás a veces no- pero me parece que la astucia de la afirmación está en señalar que “ser” lesbiana –o “estarlo” de alguna manera- no consiste en definir simple y llanamente una práctica u orientación sexual, digamos que no se trata sólo de con quién te acuestas, como si ello fuera un “aspecto” de nuestra vida que no “contaminara” al resto. Para decirlo simple digamos que la lesbiana no es sólo lesbiana en la cama, lo es todo el tiempo –o debería serlo, en principio.

Habitar una identidad lesbiana referiría pues, a una forma de estar o aparecer en el mundo, a una forma de experimentarlo que nos vuelve parte de una comunidad específica, un colectivo con necesidades, intereses, espacios compartidos. Pero además, siendo que esta identidad, esta forma de vivir la vida es producto y efecto de una forma específica de opresión, la lesbiana es sobre todo una identidad política. No podemos, de hecho, separar la aparición de la lesbiana como identidad de lo que sería la aparición de ésta como sujeto político. Sólo con el cambio sustantivo en la forma de comprender la sexualidad de manera que esta pasó a ocupar un lugar central en las formas de gobernación ciudadana, fue posible la aparición de un sujeto público cuyo sentido de la acción, y por tanto de identidad, está dado desde su adscripción a una sexualidad no normativa. Digamos que llegar a comprender que la sexualidad no refiere a un ámbito particular de la vida, ni pertenece, como se nos había acostumbrado a pensar, al campo de lo privado, fue la condición para que estallaran nuevas formas de subjetividad, como la de la lesbiana, ancladas en la sexualidad como eje articulador del ser y el estar en el mundo. Esta nueva formulación de la sexualidad como campo minado por el poder y por tanto profundamente político situó indefectiblemente a las lesbianas y otras sexualidades disidentes en el espacio de lo público, entablando desde allí un diálogo y una lucha con la sexualidad normativa.

Me gusta volver la mirada a este punto para explicitar la política lesbiana como una acción que trasciende la mera exigencia de derecho a la intimidad y a la realización personal, y cuyos objetivos, no pueden limitarse a un reclamo de derecho a la diferencia o de derecho a “ser”, como parece venir perfilándose últimamente. Como ya he expresado en otras oportunidades las lesbianas no deberíamos permitirnos caer en la trampa de una política particularista en reclamo de un elemental derecho a la inclusión y al reconocimiento. No porque ello no fuera válido, como de hecho lo es para un sector del movimiento, sino porque nuestra lucha no puede dejar de vérselas con el régimen de la heterosexualidad normativa, como sistema de poder que nos engloba a todxs y gracias al cual opera la inexistencia e invisibilidad lesbiana. Olvidar que las lesbianas (in)existimos gracias a la existencia de un régimen de heterosexualidad obligatoria, en donde junto a gays, travestis, trans somos el reverso del sujeto reproductivo deseado y proyectado, olvidar que nuestra acción no puede dejar de enfrentar a este sujeto de la normatividad, que no podemos dejar de cuestionarlo, no haría sino volver inocua nuestra acción, quitarle su mayor potencia liberadora.

En estos días, próximos a la celebración del Primer Encuentro de Lesbianas de la Argentina, cuando lesbianas de todas las regiones del país vendrán por primera vez a un encuentro de este tipo, quiero aprovechar para reafirmar el carácter ineludiblemente político de este encuentro. No podría ser sino de otro modo: lesbianas celebrando su existencia debería ser la metáfora de la alegría del fin por llegar. Las lesbianas unidas no tendrían otro objetivo que el de la destitución del régimen que las vuelve imposibles y que subyuga a todas las mujeres por igual: la institución de la heterosexualidad obligatoria. Esta batalla nos hermana al resto de las mortales.

Cardápio 6/07/2010

CAPÍTULO VII / D. GLÓRIA

Minha Mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia de prédios, certo número de apólices, e deixou-se estar na casa de Mata-cavalos, onde vivera os dous últimos anos de casada. Era filha de uma senhora mineira, descendente de outra paulista, a família Fernandes. Ora, pois, naquele ano da graça de 1857, D. Maria da Glória Fernandes Santiago contava quarenta e dous anos de idade. Era ainda bonita e moça, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-la da ação do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, com um xale preto, dobrado em triângulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os cabelos, em bandós, eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de tartaruga; alguma vez trazia a touca branca de folhas. Lidava assim, com os seus sapatos de cordovão rasos e surdos, a um lado e outro, vendo e guiando os serviços todos da casa inteira, desde manhã até à noite. Tenho ali na parede o retrato dela, ao lado do marido, tais quais na outra casa. A pintura escureceu muito, mas ainda dá idéia de ambos. Não me lembra nada dele, a não ser vagamente que era alto e usava cabeleira
grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me acompanham para todos os lados, efeito da pintura que me assombrava em pequeno. O pescoço sai de uma gravata preta de muitas voltas, a cara é toda rapada, salvo um trechozinho pegado às orelhas. O de minha mãe mostra que era linda. Contava então vinte anos, e tinha uma flor entre os dedos. No painel parece oferecer a flor ao marido. O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de sociedade. Concluo que não se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as acusou ainda de imorais, como ninguém tachou de má a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a esperança no fundo; em alguma parte há de ela ficar. Aqui os tenho aos dous bem casados de outrora, os bem-amados, os bem-aventurados, que se foram desta para a outra vida, continuar um sonho provavelmente. Quando a loteria e Pandora me aborrecem, ergo os olhos para eles, e esqueço os bilhetes brancos e a boceta fatídica. São retratos que valem por originais. O de minha mãe, estendendo a flor ao marido, parece dizer: "Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!" O de meu pai, olhando para a gente, faz este comentário: "Vejam como esta moça me quer..." Se padeceram moléstias, não sei, como não sei se tiveram desgostos: era criança e comecei por não ser nascido. Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira expressão. São como fotografias instantâneas da felicidade.

Machado de Assis, Dom Casmurro.

Para interpretação:

Mulher, Povo Colonizado - Parte 1


Em seu livro revolucionário de 1949, O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir pergunta, “por que as mulheres não disputam a soberania dos homens?”. Sua pergunta pressupõe uma teoria filosófica em particular acerca da natureza e interação humana desenvolvida por Hegel. Essa teoria é a de que cada consciência (pessoa) mantém uma hostilidade fundamental direcionada a qualquer outra consciência, e que cada sujeito (pessoa) se coloca como Essencial ao se opor a todos os Outros. Ou seja, que as relações humanas são fundamentalmente antagônicas, e que a hostilidade é recíproca. Aquele que não obtém sucesso em se opor a um Outro se vê obrigado a aceitar os valores do outro, e então se torna submisso a ele. Agora, ao perguntar por que as mulheres não contestam a soberania dos homens, Simone de Beauvoir está perguntando por que as mulheres não se opuseram antagonicamente aos homens da mesma forma que os homens se opuseram às mulheres e uns aos outros. Ao fazer essa pergunta, ela sugere que (1) as mulheres nunca se opuseram aos homens e, portanto, são submissas não porque “perderam para os homens”, mas sim por terem aceitado uma posição de subordinação, e (2) que para alcançar o status de sujeito, para resistir à dominação dos homens, entre outras coisas, as mulheres devem se opor aos homens como os homens se opuseram às mulheres e uns aos outros.

Ao discutir a subordinação das mulheres, Simone de Beauvoir argumenta que “o casal é uma unidade fundamental cujas metades se acham presas indissoluvelmente uma à outra”. A característica básica da mulher é ser fundamentalmente o Outro. Portanto, as mulheres “conquistaram” apenas o que os homens estavam dispostos a conceder, e nada tomaram. Simone de Beauvoir sugere razões para isso: as mulheres carecem de meios concretos ou organização; as mulheres não possuem passado ou história própria; as mulheres têm vivido dispersas entre os homens; e as mulheres solidarizam com os homens de sua classe e raça. Ela aponta, por exemplo, que mulheres brancas se aliam aos homens brancos, não às mulheres negras. Ela acrescenta que renunciar o status de Outro é renunciar os privilégios conferidos através da aliança com uma casta superior. Ela conclui: “Assim, a mulher não se reivindica como sujeito, porque não possui os meios concretos para tanto, porque sente o laço necessário que a prende ao homem sem reclamar a reciprocidade dele, e porque, muitas vezes, se compraz no seu papel de Outro.” Em outras palavras, de acordo com a Simone de Beauvoir, mais uma razão pela qual as mulheres não contestaram a soberania dos homens e afirmaram o direito à sua própria existência é a de que as mulheres não estão completamente insatisfeitas em ser definidas como Outro. Simone de Beauvoir então discute como tudo isso se deu, porque, como ela afirma: “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Alguém não nasce uma mulher porque “mulher” é uma categoria construída. E está intimamente ligada à categoria “homem”.

Embora eu não concorde que as mulheres sempre estiveram submetidas aos homens e também que para resistir à soberania dos homens as mulheres devem agir como eles, ainda assim uma relação básica de dominação e subordinação parece existir entre homens e mulheres, e não é claro, com algumas exceções notáveis desde o início do Patriarcado, que mulheres resistiram essa relação. [nota: duas exceções notáveis recentes são as beguinas européias e comunidades femininas chinesas] Em minha opinião, a fim de avaliar plenamente essa relação de dominação e subordinação nós precisamos nos ater não apenas à abordagem do sexismo, ou até mesmo da homofobia ou heterossexismo, mas, principalmente, da relação do heterossexualismo em si. [nota: O que denomino heterossexualismo não é simplesmente uma questão de homens fazendo sexo procriativo com mulheres. Eu estou me referindo a um completo estilo de vida promovido e aplicado por todas as instituições formais e informais da sociedade dos Patriarcas, da religião à pornografia, ao trabalho doméstico não-remunerado à medicina. O heterossexualismo é um estilo de vida que normaliza a dominação de uma pessoa e a subordinação de outra. A relação entre mulheres e homens é considerada, dentro do pensamento anglo-europeu, como sendo a base da civilização. Eu concordo. E ela normaliza aquilo que é “essencial” à civilização anglo-européia a tal ponto que nós deixamos de perceber a dominação e subordinação em qualquer das suas capacidades “benevolentes” como sendo errada ou nociva: a relação “amorosa” entre homens e mulheres, a relação “pretetora” entre imperialistas e colonizados, a relação de “manutenção da paz” entre a democracia (capitalismo dos EUA) e ameaças à democracia. Eu acredito que, a menos que o heterossexualismo como um modelo de relação seja destruído, sempre permanecerão, na consciência social, conceitos que validam a questão.]
Compreender o sexismo envolve a análise de como o poder institucional está nas mãos dos homens, de como os homens discriminam as mulheres, de como a sociedade classifica os homens como a norma e as mulheres como passivas e inferiores, de como instituições masculinas objetificam as mulheres, de como a sociedade exclui as mulheres da participação como seres humanos plenos, e de como o que tem sido entendido como comportamento masculino normal é também violência contra as mulheres. Em outras palavras, analisar o sexismo é compreender primariamente como as mulheres são vítimas do comportamento masculino institucionalizado e normalizado.
Compreender o heterossexismo, bem como a homofobia [nota: Celia Kitzinger sugere que paremos de usar “homofobia”. Ela argumenta que o termo não surgiu do movimento de libertação das mulheres, mas sim da disciplina acadêmica da Psicologia. Ela questiona a caracterização do medo heteropatriarcal das lésbicas como algo “irracional”, ela questiona a orientação psicológica (ao invés de política) da “fobia”, e ela observa que, dentro da Psicologia, a única alternativa para a homofobia é o humanismo liberal.], envolve a análise, não apenas da vitimização das mulheres, mas também de como as mulheres são definidas em relação aos homens ou então inexistentes, de como lésbicas e homens gays são tratados – verdadeiros bodes expiatórios – como perversos, de como as escolhas de parceiros íntimos tanto para mulheres e homens são restringidas ou negadas por via de tabus a fim de manter uma determinada ordem social. (Por exemplo, se as relações sexuais entre homens fossem abertamente permitidas, então os homens poderiam fazer com os homens o que eles fazem com as mulheres e, então, [alguns] homens se tornariam o que as mulheres são. Isso é proibido. Ademais, se o amor entre as mulheres fosse abertamente explorado, as mulheres poderiam simplesmente se afastar dos homens, tornando-se “não-mulheres”. Isso, também, é proibido.) Concentrar-se no heterossexismo desafia a heterossexualidade como instituição, mas isso também pode induzir as lésbicas a encarar como um objetivo político nossa aceitação, assimilação até, na sociedade heterossexual: nós tentamos afirmar para os heterossexuais que somos normais (ou seja, iguais a eles), que eles são injustos ao nos estigmatizar, que é uma mera preferência sexual.
No seu estudo revolucionário sobre a heterossexualidade compulsória, Adrienne Rich nos desafia a encarar a heterossexualidade como uma instituição política que garante o direito dos homens do acesso físico, econômico e emocional às mulheres. Jan Raymond desenvolve uma teoria da hetero-realidade e argumenta: “embora eu concorde que nós vivemos em uma sociedade heterossexista, penso que a questão mais ampla é a que nós vivemos em uma sociedade hetero-relacional na qual muito das relações pessoais, sociais, políticas, profissionais e econômicas das mulheres são definidas pela ideologia de que a mulher existe para o homem.” Eu vou um pouco além.
Compreender o heterossexualismo envolve a análise da relação entre homens e mulheres na qual tanto homens quanto mulheres possuem um papel. O heterossexualismo significa homens dominando e tornando as mulheres inaptas a variadas atividades de diversas formas, desde ataques diretos a cuidados paternalistas, e mulheres desvalorizando (por necessidade) a criação de laços entre mulheres bem como encontrando conflitos inerentes entre compromisso e autonomia e, consequentemente, valorizando uma ética da dependência. O heterossexualismo é um estilo de vida (que os praticantes apresentam em gradações variadas) que normaliza a dominação de uma pessoa em uma relação e a subordinação da outra. Como resultado, o heterossexualismo debilita a agência feminina.
O que eu chamo de “heterossexualismo” não é simplesmente uma questão de homens fazendo sexo procriativo com mulheres. Ele é um completo estilo de vida que envolve um equilíbrio delicado, embora às vezes rude, entre a predação masculina e proteção masculina de um objeto feminino da atenção masculina. [nota: Penso que o modelo principal de interação pessoal para mulheres e lésbicas tem sido heterossexual. No entanto, para os homens na tradição anglo-européia, também tem havido um modelo de interação masculina homossexual – uma forma de criação de vínculos entre homens, muito embora o sexo entre homens tenha sido abominado. E embora não seja a minha intenção aqui analisar esse modelo, eu sugiro que ele gira em torno de um eixo de dominação e submissão, e que o heterossexualismo é basicamente um modelo homossexual masculino refinado.] O heterossexualismo é uma relação econômica, política e emocional particular entre homens e mulheres: os homens devem dominar as mulheres e as mulheres devem se subordinar aos homens de várias formas. [nota: Julien S. Murphy escreve: “A heterossexualidade é mais bem denominada heteroeconomia, pois ela se relaciona com a linguagem do intercâmbio, troca, barganha, leilão, compra e venda... A heterossexualidade é a economia da troca na qual uma estrutura de poder baseada em gênero continuamente se estabelece através da apropriação do partido desvalorizado em um sistema dual de gênero. Tal estabelecimento ocorre através de cada instância de ‘fazer um negócio’ no mercado do sexo.”] Como resultado, os homens presumem acesso às mulheres enquanto que as mulheres permanecem ligadas aos homens e são incapazes de manter uma comunidade de mulheres.
Nos EUA, as mulheres não podem aparecer em público sem que alguns homens se aproximem delas presumindo acesso às mesmas. De fato, muitas mulheres pensarão que algo está errado se isso não acontecer. Uma mulher é simplesmente alguém a quem tal comportamento é apropriado. Quando uma mulher está acompanhada por um homem, no entanto, ela geralmente não é mais considerada “mercadoria disponível”. Como resultado, homens próximos a mulheres – pais, namorados, maridos, irmãos, acompanhantes, colegas – se tornam protetores (em teoria), inviabilizando aproximações de outros homens.
O valor da proteção especial para com as mulheres é prevalente na nossa sociedade. Protetores interagem com as mulheres de maneiras que promovem a imagem da mulher como indefesa: homens abrem portas, puxam cadeiras, esperam que as mulheres se vistam de forma que interfiram na sua própria auto-proteção. E as mulheres aceitam isso como comportamento atencioso e elogioso, e vêem a si próprias como pessoas que necessitam de atenção e proteção especiais. [nota: Ao questionar o valor da proteção especial para mulheres, eu não estou dizendo que as mulheres nunca deveriam pedir ajuda. Isso é tolice. Eu estou falando sobre o ideal das mulheres como necessitadas de abrigo/suporte externo contínuo. O conceito de que crianças precisam de proteção especial é prevalente e eu contesto esse conceito quando ele é utilizado para anular sua integridade “para seu próprio bem”. Mas, ao menos, a proteção para crianças envolve em teoria garantir que crianças [meninos] possam crescer e aprender a cuidar de si próprios. Ou seja, crianças [meninos] são protegidas até que tenham crescido e desenvolvido habilidades e proficiências que necessitam a fim de viver nesse mundo. Nenhuma expectativa como essa está incluída no ideal de proteção especial para mulheres: esse ideal não inclui a expectativa de que as mulheres estarão algum dia na posição de cuidar de si próprias (crescer).]
O que uma mulher se depara em um homem é ou um protetor ou um predador, e os homens estabelecem suas identidades através de um ou outro desses papéis. Isso tem no mínimo cinco conseqüências. Primeiro, não pode haver protetores a menos que exista um perigo. Um homem não pode se identificar no papel de protetor a menos que exista alguém que precise de proteção. Então, é no interesse dos protetores que existam predadores. Segundo, para serem protegidas, as mulheres devem estar em perigo. Ao retratar as mulheres como desamparadas e indefesas, os homens retrata as mulheres como vítimas... e, portanto, como alvos.
Terceiro, uma mulher (ou garota) é vista como objeto da excitação masculina, e, dessa forma, sua causa. Isso fica claro no caso do estupro: ela deve ter feito algo para tentá-lo – pobre criatura hormonal que ele é. Portanto, se as mulheres são seres que por natureza estão em perigo, obviamente, elas são seres naturalmente sedutores – elas ativamente atraem predadores. Quarto, para serem protegidas, as mulheres devem concordar em agir como os homens ditam às mulheres que devem agir: parecer femininas, provar que não são ameaçadoras, ficar em casa, ficar apenas com o protetor, desvalorizar suas ligações com outros mulheres e por aí vai.
Finalmente, quando as mulheres se desvirtuam do papel feminino se tornando ativas e “culpadas” [nota: Na sua análise dos contos de fadas, Andrea Dworkin aponta que uma mulher ativa é retratada como má (a madrasta) e uma mulher boa está geralmente dormindo ou morta (Branca de Neve, Bela Adormecida).], é uma mera questão de lógica que os homens as retratem como vis e aumentem a violência física evidente contra elas a fim de reafirmar o status de vítima das mulheres. Por exemplo, à medida que a demanda pelos direitos das mulheres no EUA se tornou publicamente perceptível, a imagem de mulheres sozinhas como “putas” convidando ataque também se tornou prevalente. Uma mulher sozinha pedindo carona é vista não como alguém a ser protegida, mas como alguém que abdicou de seu direito à proteção e, portanto, como alguém que é um alvo para ataque. O grande aumento de pornografia – entretenimento produzido por e para homens sobre mulheres – é a resposta generalizada dos homens à demanda do movimento de libertação das mulheres por integridade, por autonomia e dignidade.
O que as feministas radicais expuseram através de toda a sua pesquisa sobre incesto (estupro da filha) e espancamento de esposas é que os protetores são também predadores. Obviamente, não todos os homens são espancadores de esposas ou namoradas, porém mais da metade daqueles que vivem com mulheres são. E, também, um número significativo de casa de família nos EUA abriga um homem “incestuoso”.
Embora homens possam demonstrar preocupação sobre o abuso de mulheres, eles possuem uma relação com o abuso diferente daquela das mulheres; suas preocupações não são as preocupações das mulheres. Por exemplo, frequentemente homens ficam furiosos com o fato de que uma mulher foi estuprada ou espancada por outro homem. Porém, isso seria ou o homem se posicionando em seu papel de protetor – raramente, se alguma vez, lhe ocorre ensiná-la auto-defesa – ou um homem profundamente afetado por danos causados à sua “propriedade” por outro homem. E, enquanto que alguns homens sintam desprezo por homens que espancam ou estupram, Marilyn Frye sugere que é bem possível que o seu desprezo surja não do fato de que o abuso da mulher está ocorrendo, mas sim do fato de que o abusador ou estuprador precisa recorrer à força para obter aquilo que eles próprios obtém mais sutilmente pela arrogância.
A corrente disposição dos homens no poder de aprovar leis restringindo a pornografia é uma questão de homens tentando restabelecer a imagem assexuada e virginal de (algumas) mulheres que eles podem então proteger em suas casas. E eles estão usando em sua defesa mulheres da direita bem como feministas que parecem estar pedindo proteção, como mulheres direitas, ao invés de exigindo libertação. Os homens usam da violência quando as mulheres não prestam atenção a eles. Então, quando as mulheres pedem proteção, os homens podem encontrar motivações ao perseguir os predadores – particularmente aqueles de uma raça ou classe diferente.
Em outras palavras, a lógica da proteção é essencialmente a mesma da predação. Através da predação, os homens fazem coisas com as mulheres e contra as mulheres que as violam e minam sua integridade. No entanto, a proteção objetifica tanto quanto a predação. Para proteger mulheres, os homens fazem coisas com e contra ela; agindo “pelo próprio bem de uma mulher”, eles violam sua integridade e minam sua agência.


A proteção e a predação surgem da mesma ideologia de dominância masculina, no sentido de que é indiferente à sustentação bem-sucedida da dominação masculina qual das duas condições as mulheres aceitam. Portanto, Sonia Johnson afirma: “Nossa convicção de que se cessarmos de estudar e monitorar os homens e suas mais recentes loucuras, que se deixarmos de “arranhar” aterrorizadas e chutar, alternado com choramingos e apego exagerado – toda a nossa relação sadomasoquista doentia com os Mestres – eles ficarão furiosos e nos matarão é pura superstição. Com nossos olhares fixos neles, eles nos matam diariamente; com nossos olhares cravados nesses, eles ficam furiosos."
Algumas das primeiras feministas radicais afirmaram que mulheres são colonizadas. Vale a pena considerar essa afirmação. Aqueles que desejam dominar um grupo e que são bem-sucedidos obtêm controle através da violência. Essa demonstração de força, no entanto, requer esforços e recursos tremendos; então, colonizadores introduzem valores retratando a relação do colonizador dominante com o colonizado subordinado como natural e normal.
Uma das primeiras ações dos colonizadores após a conquista é controlar a linguagem, trabalho esse frequentemente realizado por missionários cristãos. Sua missão é dar à linguagem uma forma escrita e então erguer escolas onde ela é ensinada aos nativos da terra. Aqui, novos valores são introduzidos: por exemplo, conceitos de “claro”/”iluminado” e “escuro”/”negro” com as conotações de “bom” e “mau”, respectivamente. Palavras para superiores e divindades então passam a carregar uma conotação “clara”, bem como aparecer no gênero masculino. Ademais, valores são incutidos os quais apóiam a apropriação colonial de recursos naturais, e negam os costumes ancestrais e independência econômica do colonizado. À medida que os colonizados são forçados a utilizar a linguagem e esquema conceitual dos colonizadores, eles podem começar a internalizar esses valores. Essa é a “salvação”, e os colonizadores aplicam a doutrina daquilo que chamaram Destino Manifesto ou “fardo do homem branco”.
A teoria do Destino Manifesto implica que os colonizadores estão trazendo civilização (a versão secular da salvação) aos “bárbaros” (“pagãos”). Os colonizadores retratam os colonizados como passivos, como desejando e precisando de proteção (dominação), como sendo cuidados “para seu próprio bem”. Qualquer um que resista à dominação será visto como anormal e atacado como um risco à sociedade (“civilização”) ou chamado de louco e isolado em nome da proteção (dele mesmo ou da sociedade).




Dessa forma, os colonizadores passam da predação – ataque e conquista – à proteção benevolente. Aqueles que foram colonizados são retratados como desamparados, infantis, passivos, e femininos; e os colonizadores se tornam governantes benevolentes, aceitando o fardo da administração “civilizada” de recursos (exploração).
Depois que a ordem social foi estabelecida, caso os colonizados comecem a resistir à proteção e benevolência, insistindo que eles preferem fazer tudo por si mesmos, independente das conseqüências imediatas, os colonizadores mais uma vez se tornarão predadores, aumentando a violência para convencer os colonizados de que eles precisam de proteção e que eles não conseguem sobreviver sem os colonizadores. Uma das frases atribuídas a Mahatma Gandhi no filme Gandhi de importância para esse argumento: “A fim de manter a benevolência e nos dominar, vocês devem nos humilhar”. Quando tudo falha, os homens partirão para a guerra para afirmar sua “masculinidade”: seu “direito” de conquistar e proteger mulheres e outros seres “femininos” (ou seja, qualquer um que eles possam dominar).
O objetivo da colonização é a apropriação de recursos estrangeiros. A colonização funciona tornando um povo inapto e economicamente dependente. Em seu livro sobre colonialismo, Como a Europa Subdesenvolveu a África, Walter Rodney argumenta que as sociedades africanas não teriam se tornado capitalistas sem o colonialismo branco. Sua tese é a de que a África estava progredindo economicamente de uma maneira distinta do desenvolvimento pré-capitalista até que os europeus chegaram para colonizar a África a subdesenvolvê-la. Restringindo o desenvolvimento da economia africana, e a reconstruindo para alcançar seus objetivos, os europeus destituíram os africanos de seus terras e recursos. Além disso, os europeus destituíram os africanos de suas habilidades econômicas autônomas, primariamente ao transformar o sistema educacional e ensinar os povos africanos a rejeitar o conhecimento de seus ancestrais. Essa desabilitação dos povos conquistados é crucial para a dominação, pois ela significa que os colonizados se tornam dependentes dos colonizadores para a sua sobrevivência. Na verdade, entretanto, são os colonizadores que não conseguem sobreviver – como colonizadores – sem os colonizados.
Bette S. Tallen sugere que, de forma semelhante, as mulheres foram desabilitadas/castradas sob o heterossexualismo, tornando-se economicamente dependentes dos homens, enquanto que os homens se apropriam dos seus recursos. Como Sonia Johnson aponta: “de acordo com estatísticas das Nações Unidas, embora as mulheres executem dois terços do trabalho no mundo, nós ganhamos apenas um décimo da renda mundial e somos donas de apenas um centésimo das propriedades do mundo”. A desabilitação das mulheres varia dependendo de condições históricas e materiais específicas. Por exemplo, na sua análise da Grã-Bretanha pré-industrial do século XVII, Ann Oakley observa que mulheres assumiam muitas profissões quando separadas de seus maridos, ou quando viúvas. A revolução industrial mudou tudo isso e privou muitas mulheres de suas habilidades. Anteriormente a isso, durante os tempos da caça às bruxas, os homens europeus se apropriaram das habilidades de cura, parto, ensino das mulheres, e tentaram destruir as suas habilidades psíquicas. [nota: Atualmente, os homens estão tentando controlar as capacidades reprodutivas das mulheres ao controlar os órgãos reprodutivos femininos e processos femininos.] Como Alice Molloy escreve, “a suposta história da feitiçaria é simplesmente o processo pelo qual as mulheres foram separadas umas das outras e do seu potencial para sintetizar informação”. Em geral, muitas mulheres não mais possuem seus próprios projetos, elas perderam o acesso a suas próprias ferramentas. Como resultado, elas são coagidas a adotar uma ideologia de dependência dos homens.
O heterossexualismo possui certas similaridades com o colonialismo, particularmente na sua manutenção por via da força quando o paternalismo é rejeitado (ou seja, o aumento da predação dos homens quando as mulheres rejeitam sua proteção), e na sua representação da dominação como natural (os homens dominam as mulheres tão “naturalmente” quanto os colonizadores dominam os colonizados, e sem nenhuma noção de se próprios como estando a oprimir aqueles que dominam exceto durante os momentos de agressão evidente) e na desabilitação das mulheres (tornando-as inaptas de diversas formas a variadas atividades). E, da mesma que são os colonizadores que não conseguem sobreviver como colonizadores sem os colonizados, são os homens que não conseguem sobreviver como homens (protetores ou predadores) sem as mulheres.
Complementando a função de protetor/predador dos homens, está o conceito de “mulher”, particularmente como ele opera na sociedade mainstream dos EUA. Consideremos do que esse conceito carece. Ele carece (1) uma noção do poder feminino, (2) qualquer sugestão de que as mulheres como um grupo têm sido alvos da violência dos homens, (3) qualquer sugestão da resistência feminina, tanto coletiva quanto individual, à dominação e controle dos homens, e (4) qualquer noção do vínculo lésbico.
O conceito de “mulher” não inclui nenhuma noção verdadeira de poder feminino. Certamente, ele não inclui nenhuma noção de mulheres como forças conquistadoras e comandantes. De forma mais significativa, ele não inclui nenhuma noção de força e competência. Eu não estou negando que existem muitas mulheres fortes. E, quando as mulheres encorajam umas às outras em desafio à avaliação dominante, imagens significativas aparecem. Mas, com o passar do tempo sob o heterossexualismo, essas imagens tendem a ser modificadas por apelos à feminilidade ou são utilizadas contra as mulheres. Sem uma suficiente deferência aos homens, as mulheres perceberão que os conceitos de “vaca castradora”, “sapatão” ou similares são utilizados para mantê-las na linha.
Homens de um determinado grupo modificam parcialmente a “feminilidade” a fim de enfatizar a competência e a habilidade femininas quando eles realmente precisam de ajuda extra: durante guerras – Rosie the Riveter, por exemplo [nota: Ícone cultural americano da segunda grande guerra. Ela representa as milhares de mulheres que trabalharam em fábricas durante a produção de armamento militar para a Segunda Guerra Mundial.]; em fazendas pequenas; em movimentos revolucionários; em kibbutzim, onde o Estado é instável; em uma comunidade profundamente dividida sob opressão, etc. Porém, uma vez que o seu domínio está estabelecido de forma mais sólida, os homens retomam o estereótipo feminino (ao mesmo tempo que esperam que as mulheres executem a maior parte de seus trabalhos sem receber nenhum benefício – trabalhos domésticos, por exemplo).
No seu artigo sobre mulheres negras nas cidades, Pat Robinson relaciona a perda da auto-consciência e poder de um povo com a perda de suas divindades. Ela afirma, “para que um grupo seja controlado, é preciso que sejam tomados seus deuses, suas próprias reflexões acerca de si mesmos, e sua consciência interior”. Quando encontramos referências a deusas de qualquer cultura na cultura anglo-européia dominante, elas estão sendo raptadas ou estupradas, e/ou são mães. [nota: Existem muitas outras deusas além das deusas da fertilidade e da maternidade. Há deusas da caça, da tecelagem, da sabedoria, das mudanças, do inverno, da floresta, da terra, dos mortos, da justiça, do amor, da comida, do sol, do fogo, da escrita, da aurora, da vingança, da menarca, da lua, do mar, dos vulcões, e das bruxas e da mágica – citando apenas algumas. Ademais, há motivos para acreditar que deusas obesas, como a Vênus de Willendorf, representavam não maternidade, mas sim poder: as camadas de gordura eram camadas de poder.] De forma significativa, a única figura feminina presente no pensamento anglo-europeu é a Virgem Maria, resquício de uma antiga deusa, transformada em uma vítima-modelo de estupro, com a reputação de ter dito a um deus, “faça-se em mim segundo a tua vontade”.
Pat Robinson prossegue observando que, para controlar um povo, enquanto que um grupo deve tomar-lhes suas próprias reflexões acerca de si mesmos, ele deve primeiramente utilizar de força. (Isso, obviamente, é o processo inicial de colonização.) A segunda carência no conceito de “mulher” é uma noção de que a força é utilizada contra as mulheres como um grupo. A literatura feminista tem discutido o massacre das bruxas na Europa. Alguém poderia perguntar como uma destruição em massa poderia ser erradicada da consciência coletiva. Talvez ela tenha sido simplesmente suprimida. Porém, quando uma ordem social requer a exterminação de um determinado grupo, e essa exterminação é virtualmente bem-sucedida, a memória subseqüente desse processo pode ser erradicada ao ser renomeada. O massacre das bruxas na Europa por um período de mais de trezentos e cinqüenta anos sofreu essa renomeação. A caricatura das bruxas nos “ataca” anualmente na forma de um evento da mídia de massa nos EUA: o Halloween.
O uso da força ou violência contra as mulheres como um grupo não esteve limitada à Europa. Mary Daly, entre outras, procurou trazer à consciência feminista dos EUA o fato de que tal força foi e continua a ser usada contra as mulheres em todas as partes do mundo. E embora a prática dos assassinatos das viúvas indianas tenha sido reconhecida como um problema, isso ocorreu apenas porque os homens no poder recentemente o denominaram um problema. Da mesma forma, embora na China os pais tenham considerado que a atadura dos pés não é economicamente útil e, portanto, “imoral”, nossa memória e consciência do que levou a essa prática e por que ela foi perpetuada por tanto tempo está desaparecendo. Também, o infanticídio feminino assumiu sua posição como uma expressão de misoginia.
Uma vez que é inexistente a noção de que a violência tenha sido alguma vez direcionada às mulheres como um grupo, é difícil ter uma perspectiva da magnitude da força utilizada contra as mulheres atualmente. Enquanto que mulheres nos EUA podem ficar horrorizadas com o espectro da mutilação genital africana e as mortes das viúvas indianas, estudantes africanas (particularmente nigerianas) e indianas nas turmas para as quais leciono ficam não menos horrorizadas com a incidência de estupro e a quantidade de pornografia que constituem uma parte diária das vidas as mulheres nos EUA. Com exceção das feministas radicais, ninguém nos EUA percebe a incidência fenomenal de incesto (estupro da filha), espancamento da esposa, estupro, prostituição forçada e a ideologia da pornografia – retratada não apenas nas revistas masculinas, mas na televisão, outdoors, em supermercados, em escolas, e em geral em todo setor público e privado que uma mulher freqüenta – como uma forma de ataque orquestrado contra as mulheres. Não existe uma noção geral de que, como Sonia Johnson aponta, os homens tenham declarado guerra contra as mulheres; pelo contrário, esse ataque – já que os homens prestam atenção às mulheres – é nomeado “atração”, até mesmo “admiração”.
Em terceiro lugar, o conceito de “mulher” não inclui uma noção de resistência feminina – coletiva ou individual – à dominação masculina. Embora existam evidências de que amazonas tenham vivido na África do Norte, na China, na Anatólia (Turquia) e entre o Mar Negro e o Mar Cáspio [nota: Em 1979, o Chicago Sun-times, por exemplo, relatou a descoberta dos restos mortais de uma tribo de amazonas que viveu há 2500 anos na República da Moldávia. Arqueólogos soviéticos encontraram uma “mulher guerreira, seu cavalo de guerra, uma lança, brincos de ouro e outros adornos” em um terreno de enterro próximo à vila de Balabany.], as amazonas são tratadas repetidamente como uma piada ou algo do passado. Porém, como Helen Diner escreve: “Nas celebrações em honra dos mortos, Demóstenes, Lísias, Himérios, Isócrates e Aristides glorificam a vitória sobre as Amazonas como sendo mais importante do que aquela sobre os Persas ou qualquer outro feito na história... As guerras entre os Gregos e Persas foram guerras entre duas sociedades dominadas pelos homens. Na guerra contra as Amazonas, a questão era qual das duas formas de vida iria moldar a civilização européia à sua imagem.” De forma significativa, até mesmo feministas e feministas lésbicas evitam a idéia das amazonas, aparentemente por receio de parecerem alheias à realidade (ao consenso). Com algumas exceções notáveis, nós não estamos respondendo ao chamado de Maxine Feldman, “Mulheres amazonas, ergam-se.” Há pouca celebração das amazonas (embora nós estejamos começando a ouvir novamente sobre deusas e bruxas). Nós não reconhecemos as amazonas nem mesmo como defensoras simbólicas das mulheres – e isso em um tempo em que a violência dos homens contra as mulheres é evidente. Ao invés disso, até mesmo feministas radicais fazem pressão por maior proteção da polícia e do Estado. As amazonas – bem como as guerreiras femininas como aquelas nas sociedades dahomey ou nootka – simplesmente não se enquadram dentro do conceito de “mulher” da sociedade mainstream dos EUA.
Uma vez que não há nenhuma memória mitológica, muito menos histórica, da resistência feminina à dominação dos homens, atos isolados e individuais de resistência feminina são também tornados imperceptíveis como resistência, particularmente, como eu argumento abaixo, através do conceito de “feminilidade”. Uma “mulher” é alguém cuja identidade se dá através da sua aliança com um homem a tal ponto que qualquer mulher que resiste à violência masculina, aos avanços dos homens e ao acesso exigido pelos mesmos não é uma mulher de verdade.
O valor da “mulher”, portanto, exclui uma noção da presença, habilidade e poder femininos, de uma consciência de que violências têm sido e são perpetradas contra as mulheres como um grupo, e uma noção da resistência feminina à dominação masculina. Ele também exclui uma noção do vínculo lésbico. Adrienne Rich assumiu a tarefa de abordar (1) a ideologia “através da qual a experiência lésbica é entendida em uma gradação de desviante a abominável, ou simplesmente tornada invisível”; (2) “como e por que a escolha das mulheres por mulheres como companheiras amorosas, parceiras, colegas, amantes, comunidade, tem sido esmagada, invalidada, forçada ao acobertamento e a ser mascarada”; e (3) “a invisibilização em potencial ou total em uma gama de textos, incluindo aqueles da cultura feminista.” Como escreve Harriet Ellenberger: “Um tabu central no Patriarcado é o tabu contra mulheres unindo-se a mulheres – e, no entanto, essa união, aliança, ligação tornadas tabu têm ocorrido e continuam a ocorrer bem debaixo de seus narizes, e homens e a maioria das mulheres não pensam que elas são reais.”
O que o conceito de “mulher” inclui é igualmente significativo. Segundo a denominação masculinista das mulheres, uma “mulher” (1) é alguém que se identifica com homens, cuja identidade surge através de sua relação com o homem, (2) é alguém que se faz atraente aos homens, (3) é um objeto a ser conquistado pelos homens e (4) é uma reprodutora (de meninos).
A identidade de uma mulher é incorporada na sua relação com o homem: ela é antes de tudo e principalmente a mãe, esposa, amante, ou filha de algum homem e não de uma mulher. Como as Radicalesbians argumentaram em 1970: “Nós somos autênticas, legítimas, verdadeiras contanto que sejamos a propriedade de algum homem cujo nome carregamos. Ser uma mulher que não pertence a nenhum homem é ser invisível, patética, não-autêntica, não-verdadeira.” Uma mulher que não pertence a nenhum homem, ou não existe ou está tentando ser um homem. Ademais, uma “mulher” é responsável pela prestação de serviços sexuais aos homens. Se ela é boa ou má, qual o seu status ético, está baseado em sua disponibilidade sexual, preço e fidelidade aos homens. Em última análise, uma “mulher” é uma virgem ou uma puta – ou seja, ligada a um homem através do sexo.
Em segundo lugar, uma “mulher” é alguém que é atraente para os homens. Se ela não tenta se fazer atraente para os homens, considera-se que ela tem um problema sério. Na sociedade mainstream dos EUA, ser atraente significa que ela é caucasiana, de classe média-alta, praticamente anoréxica (isso é, doente), e jovem o bastante para não possuir rugas na sua face, embora ocasionalmente ela possa ser negra e “exótica”. Aquelas mulheres que não se enquadram nessas categorias, embora não sejam completamente descartas como mulheres, são, não obstante, forçadas a se sentir como substitutos ruins de uma mulher. [nota: Em outras partes do mundo, padrões diferentes podem se aplicar. Em alguns lugares, ser católica é essencial para a identidade da mulher, ou ser gorda, ou ser negra, não pálida. O modelo de “mulher” em termos da manifestação física tende a aderir aos valores dos homens no poder em um determinado local.] Além disso, uma “mulher” é alguém que deve ser protegida do que é mau (ou seja, “negro”) a menos que ela própria seja negra (ou seja, má) – nesse caso, outras mulheres devem ser protegidas dela. Quanto mais branca ela é, mais pura. Quanto mais negra ela é, mais perigosamente sexual. Novamente, ela é uma virgem ou uma puta – ou seja, branca ou negra.
Em terceiro lugar, uma “mulher” é alguém que deve ser conquistada por um homem. A ideologia da pornografia, de soft porn a snuff retrata uma mulher como um objeto (um receptor de uma ação – nesse caso, alguém a ser atacado e vencido), alguém que existe para ser dominada. Ela é caracterizada pelo seu desejo sexual, e ela é dominada através da violação – violão esta que ela deverá vir a desejar. A ideologia do romantismo (retratada popularmente nos romances de arlequim) é a mesma: uma mulher é um objeto (receptor de uma ação – nesse caso, alguém a ser protegido e seduzido), alguém que existe para ser conquistado. Ela é caracterizada por sua falta de desejo sexual – ela deve rejeitar as iniciativas sexuais (do homem) a fim de demonstrar o seu pudor; e, dessa forma, os homens sabem que quando ela diz “não”, na verdade ela quer dizer “sim”. Portanto ela, também, é dominada através da violação – violação da sua integridade –, violação esta que ela repentinamente começa a desejar. Tanto a pornografia quanto o romantismo nos dizem que uma mulher deve ser conquistada e dominada pela força da vontade do homem.
Finalmente, uma “mulher” é uma reprodutora. Uma mulher se realiza através da reprodução, sua possibilidade ética básica é a doação e o cuidado altruísta, e qualquer coisa que interfira com esse processo é suspeita. Além disso, nas ocasiões em que um povo está ameaçado porque os homens travam guerras, os homens ressaltam a reprodução excluindo todo o resto, e a supervisionam cuidadosamente. Nas sociedades anglo-européias, eurasiáticas e todas nas sociedades mainstream estadunidenses (central, do sul e norte), essa função não pode ser controlada por ela. Seu corpo não é seu para decidir sobre ele. A questão do aborto, por exemplo, como é abordada nos EUA, não é uma questão da mulher. Pois a questão diz respeito simplesmente a quais homens irão controlar os abortos das mulheres – o Estado ou homens individuais. E médicos exercendo sua preocupação paternalista pela ordem social esterilizam mulheres que consideram mães inadequadas, como mulheres negras pobres e porto-riquenhas. Uma “mulher” é uma reprodutora, e reprodutoras precisam de protetores que tomam as decisões sobre a reprodução, incluindo reconstrução genética. Ademais, obviamente, quando uma mulher procria com sucesso, o que ela procria é masculino – ou seja, alguém que perpetua a linhagem do seu marido. Uma “mulher”, portanto, é um objeto sexual essencialmente submisso a e dependente dos homens, alguém cuja função é perpetuar a raça (enquanto protetores e predadores põem em prática seu projeto de destruí-la). Não, ninguém nasce uma “mulher”.
[nota: Não é acidental que justamente à medida que a exigência feminista por direitos novamente obteve reconhecimento do público, aqueles no poder desviaram a atenção ética para a biologia – dessa vez, a sociobiologia. Aqui, entre descrições alegadas “objetivas” do comportamento animal, E. O. Wilson afirma que é um “fenômeno quase universal que machos são dominantes sobre fêmeas entre os animais.” Em parte alguma Wilson defende essa afirmação; ao invés disso, ela aparece adquirir corpo à medida que ele simplesmente descreve os fatos. Por exemplo, ele utiliza a palavra “harém” para descrever uma comunidade de babuínos hamadryas na qual as fêmeas são aterrorizadas à submissão e lealdade por um macho ameaçador. Entretanto, ele também utiliza esse termo para descrever comunidades centradas em fêmeas tais como as ovelhas montanhesas. O rebanho de ovelhas montanhesas é centrado nas fêmeas, fêmeas “herdam” os espaços de outras fêmeas, e as fêmeas permitem que apenas alguns machos tenham contato com elas – e isso apenas durante a temporada de acasalamento. Porém, pelo uso de Wilson da palavra “harém”, a pessoa que está lendo fica com a impressão de que os machos dominam as fêmeas nessa comunidade.
De forma significativa, Wilson considera a sociedade dos babuínos hamadryas como um modelo de desenvolvimento supremo (de heterossexualismo) em vertebrados superiores. Ele descreve fêmeas ameaçadas e atacadas como “cônjuges” que foram “recrutadas”; e se elas escapam, de acordo com ele, elas “se desviaram”. Em outra parte do livro, Wilson denomina os estágios iniciais desse comportamento ameaçador do macho como sendo “proteção”.
Talvez, a linha de raciocínio mais reveladora de Wilson surja quando ele alterna a frase “ação receptora da fêmea” com a frase “comportamento submisso da fêmea.” Através dessa equivalência, ele implica que, simplesmente ao praticar heterossexo, as fêmeas são dominadas pelos machos. Wilson descreve as fêmeas que não praticam heterossexo como sendo “tias solteironas”, ou como sendo “anti-sociais” se elas tentam escapar (como o fizeram as babuínas-anubis fêmeas que, em um experimento, cientistas puseram em uma comunidade de hamadryas). Uma vez que fêmeas fazendo sexo com machos é “natural”, presume-se logicamente que a dominação do macho é “natural”. Em suma, sob o paradigma conceitual vigente (patriarcal), a penetração do macho equivale à dominação do macho.] Eu desejo uma revolução moral.
Nós somos as mulheres sobre as quais os homens nos alertaram.

Traduzido de Lesbian Ethics - Sarah Lucia Hoagland]


Retirado do: http://www.politica-sexual.blogspot.com/