Capitalismo, sexualidades e atitudes políticas. O que isso tem a ver conosco?

Capitalismo, sexualidades e atitudes políticas. O que isso tem a ver conosco?
Marian Pessah

Tem sentido falar em capitalismo sem antes falarmos em patriarcado? Tem sentido falar em patriarcado sem resignificá-lo em seus vínculos com o capitalismo? De maneira simplificada, o patriarcado é uma ideologia/ um sistema/ uma prática de dominação e controle dos homens sobre as mulheres. A primeira idéia que quero expressar é que o patriarcado foi sendo gerado muito antes do capitalismo e se mantém até nossos dias; até quando a humanidade chega ao sistema capitalista, que se adapta ao patriarcado como luva em plena estação de inverno.
Como menciona Frederic Engels na sua grande obra: A origem da família, da propriedade privada e do Estado, referindo-se às formas pré-capitalistas de organização da produção mais primitivas:
“(...) com o aparecimento dos rebanhos e das demais riquezas novas, se produziu uma revolução na família. A indústria[3] sempre foi assunto do homem; os meios para sua produção eram manufaturados por ele e eram da sua propriedade. Os rebanhos constituíam a nova indústria; no início sua domesticação e depois a sua manutenção, eram obra do homem. Por isso o gado pertencia a ele assim como as mercadorias e os escravos que eram adquiridos por intermédio de sua troca. Todo o excedente que agora era obtido com a produção pertencia ao homem; a mulher participava do seu consumo, mas não tinha nenhuma participação em sua propriedade. (...) A divisão do trabalho na família foi a base para a distribuição da propriedade entre o homem e a mulher.”

A partir desse ponto de partida colocado por Engels e considerando que um sistema econômico se define pela maneira como as pessoas se relacionam para produzir, bem poderíamos estar falando não somente em classes sociais, mas também, em classes sexuais. Mais ainda, se todo o excedente produzido fica em poder dos homens, xs herdeirxs vão precisar estar bem definidos, assim nasce a necessidade do casamento heterossexual, para que os homens controlem “suas” mulheres e assim garantam a paternidade de seus/suas filhos/as, para dar seu sobrenome. Do mesmo modo nasce a monogamia obrigatória, pois se as mulheres estiverem com vários homens, não seria possível definir a paternidade. Para isso se faz necessário criar um dispositivo de vigilância, a partir de agora a moral será uma incrível ferramenta que contará com uma fiel parceira : a igreja.
Estamos, portanto, pensando agora num patriarcado, capitalista, em que a prostituição que já existia das mais diversas formas, para garantir o prazer sexual dos patriarcas e a monogamia, assume um novo caráter. É junto ao capitalismo que os corpos das mulheres (e de alguns homens não vamos esquecer) começam a ser trocados por moeda, transformam-se em mercadoria, categoria específica do sistema capitalista. Também, este “novo” sistema, estaria sendo um grande caldo de cultivo da moral homo-lesbofóbica, pois existindo, é uma bela inimiga do sistema reprodutor, isto é do sexo focado na reprodução e na moral familiar.
Parece uma conseqüência lógica, uma equação matemática que as relações familiares, como microcosmos da organização econômica, tenham convergido para o formato do casal heterossexual e monogâmico, com um papel fundamental na manutenção da ideologia capitalista.
Dessa forma, do ponto de vista econômico, entende-se por capitalismo uma relação de domínio da burguesia sobre o proletariado. E entende-se por família hetero-monogâmica, uma relação entre o homem e a mulher, onde é ele quem trabalha fora de casa, e é ela quem faz as tarefas do lar, sem horário determinado. Atualmente, grande parte das mulheres também trabalham fora de casa, mas essa atividade, não as exime de suas tarefas domésticas, pelo contrário, duplica a jornada laboral.
Por isso, em 1843, quando Flora Tristan escreveu o seu importante livro a União operária, já dizia que as mulheres somos as proletárias do proletariado. Infelizmente, 167 anos depois, isso segue tão atual como na época. Interessante se perguntar pelos avanços acontecidos em todos esses anos, mas isso ficará para uma próxima vez, quem sabe uma linda avaliação sobre os feminismos e a sua incidência na sociedade. Também, fica em aberto a provocação e o chamado.

Retomando. O que é o casamento? Um contrato social e econômico – de compra e venda? - assinado perante o Estado e/o a Igreja. Quando uma mulher se casa, passa de propriedade do pai, para o marido. Ou não é assim que acontece nas Igrejas? Sejam essas católicas, judias ou muçulmanas.
As mulheres entram caminhando pelo tapete vermelho do braço do pai até os agora maridos que aguardam no altar. Para chegar até esse momento sublime elas/nós tem/temos engolido o conto romântico de amor para toda a vida, da pessoa escolhida, de não ficar sozinhas, nem solteironas. Do medo de não ser amadas. O capitalismo, hoje muito bem representado por mega empresários, não fica de lado e faz o seu aporte ligando grandes e caros vestidos e elegantérrimas festas com mais amor ainda. Chegando a uma bela equação, quanto mais luxo, mais amor. Os olhos deste sistema parecem com os do tio Patinhas, em lugar de íris tem o símbolo $.
Cabe nos perguntar qual a relação entre amor e Estado. Se não fosse por todas estas coisas da necessidade da herança, de controle e domínio, não haveria necessidade de casamento, de testemunhar amor ante ninguém. Quando se assina um contrato numa empresa, por exemplo, nos informam quantas horas serão acordadas de trabalho, quais os feriados, ou seja, somos avisadas sobre direitos e obrigações. No contrato matrimonial, nós mulheres devemos trabalhar os 365 dias do ano, limpar a casa, manter a ordem, ter crianças e cuidar delas, se responsabilizar por sua educação. E como se não bastasse isso, também nos é exigido um corpo maravilhoso além de fazer sexo todas as noites que o marido o desejar. Como é o nome se não faxineira sem salário, proletária do proletariado, ou eterna escrava?
Qual o sentido de manter tudo isso intacto hoje? Que o movimento LGBTT – agora formalmente com o L na frente – lute pelo casamento, que não é mais que reproduzir o sistema e aqueles sonhos de consumo feitos pelo sistema, qual a função do casamento entre pessoas que não tem bens? Habitar o sono feito para oprimir? Qual a atitude política do movimento que deveria ser de libertação, e não de continuação, para dar uma melhoradinha nas opressões de maneira que tudo mude para tudo ficar igual?
Felizmente, teve uma criatura muito inteligente, que em 1949, escreveu um livro de dois volumes, importantíssimo, que se chamou O segundo sexo. Sim, Simone de Beauvoir. Ai deixou impressa a sua grande e importante frase: “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Ela também foi uma importante referência com a sua vida, no plano intelectual, e na prática, pois junto com o seu companheiro, Jean Paul Sartre, com quem não só nunca se casou, nem sequer morou junto, enfrentou o desafio de construir novos e variados amores e núcleos afetivos.
Poucos anos depois, as FMF - Feministas Materialistas Francesas, da mesma turma que a Simone fazia parte dirão: “...o ponto central do pensamento, radica em que nem os homens, nem as mulheres são um grupo natural ou biológico, não possuem nenhuma essência especifica nem identidade a qual defender e não se definem pela cultura, a tradição, a ideologia, nem pelos hormônios, senão, simplesmente por uma relação social, material concreta e histórica. Esta relação é uma relação de classe ligada ao sistema de produção ao trabalho e a exploração de uma classe por outra”[4].
Uns anos mais tarde, Monique Wittig, também da turma das FMF, escreverá um texto: Ninguém nasce mulher e ficará muito conhecida a sua frase as lésbicas não somos mulheres.
“... o lesbianismo oferece de momento, a única forma social na qual podemos viver livremente. Lesbiano é o único conceito que conheço que está mais além das categorias de sexo (mulher e homem), pois o sujeito designado (lesbiano) não é uma mulher, nem economicamente, nem politicamente, nem ideologicamente”[5].
“Somos prófugas de nossa classe, da mesma maneira que os escravos americanos fugitivos o eram quando se escapavam da escravidão e se libertavam”.
“Temos que compreender que o conflito de classes não é eterno e que para ultrapassá-lo, é necessário destruir politicamente, filosoficamente, e simbolicamente as categorias de homes e de mulheres”.

Agora que temos algumas ferramentas de análise na mão, seria interessante nos colocarmos como lésbikas polítikas, não somente como mulheres homo-afetivas como algumas pessoas gostam de nos chamar. É necessário ver o potencial revolucionário que temos em nós, chegou a hora de tirarmos aquelas luvas, e tomar a realidade com as nossas próprias mãos. Dar um basta, vestir as nossas próprias roupas de lésbikas, seres dissidentes deste patriarcado capitalista. É importante tomar uma atitude política contraria ao casamento monogâmico e reprodutor das normas heterossexuais. Nós não aceitamos este sistema econômico e entendemos que não faz sentido o casamento que venha a referendar através dos nossos corpos esse sistema opressor.
Temos a faca e o queijo na mão para dizer não a essa monogamia obrigatória que tanto nos oprime e cuja função básica é a reprodução do sistema do capital e da propriedade privada, agora nos corpos, também das mulheres, por nós, mulheres.

Não há movimento possível sem a existência de utopia, objetivos e sonhos. Vamos lá, o céu esta aqui para voar, sonhar e experimentar a liberdade que nos da o fato de sermos anormais, lésbikas polítikas.

Referências bibliográficas

Beauvoir, Simone de. O segundo sexo, Ed. Gallimard, Paris, 1976.
Engels, Friederich El origen de la familia, la propiedad privada y el Estado. Editorial Progreso, Moscú.
Falquet, Jules e Curiel, Ochy (org)- El patriarcado desnudo, ed. Brecha Lesbica, 2005.
Tristán, Flora La Unión obrera, Ed. Fontanara.
Wittig, Monique. Ninguém nasce mulher in Em rebeldia – da bloga ao livro, Porto Alegre, 2009.

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