CAPÍTULO VII / D. GLÓRIA
Minha Mãe era boa criatura. Quando lhe morreu o marido, Pedro de Albuquerque Santiago, contava trinta e um anos de idade, e podia voltar para Itaguaí. Não quis; preferiu ficar perto da igreja em que meu pai fora sepultado. Vendeu a fazendola e os escravos, comprou alguns que pôs ao ganho ou alugou, uma dúzia de prédios, certo número de apólices, e deixou-se estar na casa de Mata-cavalos, onde vivera os dous últimos anos de casada. Era filha de uma senhora mineira, descendente de outra paulista, a família Fernandes. Ora, pois, naquele ano da graça de 1857, D. Maria da Glória Fernandes Santiago contava quarenta e dous anos de idade. Era ainda bonita e moça, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-la da ação do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, com um xale preto, dobrado em triângulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os cabelos, em bandós, eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de tartaruga; alguma vez trazia a touca branca de folhas. Lidava assim, com os seus sapatos de cordovão rasos e surdos, a um lado e outro, vendo e guiando os serviços todos da casa inteira, desde manhã até à noite. Tenho ali na parede o retrato dela, ao lado do marido, tais quais na outra casa. A pintura escureceu muito, mas ainda dá idéia de ambos. Não me lembra nada dele, a não ser vagamente que era alto e usava cabeleira
grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me acompanham para todos os lados, efeito da pintura que me assombrava em pequeno. O pescoço sai de uma gravata preta de muitas voltas, a cara é toda rapada, salvo um trechozinho pegado às orelhas. O de minha mãe mostra que era linda. Contava então vinte anos, e tinha uma flor entre os dedos. No painel parece oferecer a flor ao marido. O que se lê na cara de ambos é que, se a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de sociedade. Concluo que não se devem abolir as loterias. Nenhum premiado as acusou ainda de imorais, como ninguém tachou de má a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a esperança no fundo; em alguma parte há de ela ficar. Aqui os tenho aos dous bem casados de outrora, os bem-amados, os bem-aventurados, que se foram desta para a outra vida, continuar um sonho provavelmente. Quando a loteria e Pandora me aborrecem, ergo os olhos para eles, e esqueço os bilhetes brancos e a boceta fatídica. São retratos que valem por originais. O de minha mãe, estendendo a flor ao marido, parece dizer: "Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!" O de meu pai, olhando para a gente, faz este comentário: "Vejam como esta moça me quer..." Se padeceram moléstias, não sei, como não sei se tiveram desgostos: era criança e comecei por não ser nascido. Depois da morte dele, lembra-me que ela chorou muito; mas aqui estão os retratos de ambos, sem que o encardido do tempo lhes tirasse a primeira expressão. São como fotografias instantâneas da felicidade.
Machado de Assis, Dom Casmurro.
Para interpretação:
Mulher, Povo Colonizado - Parte 1
Em seu livro revolucionário de 1949, O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir pergunta, “por que as mulheres não disputam a soberania dos homens?”. Sua pergunta pressupõe uma teoria filosófica em particular acerca da natureza e interação humana desenvolvida por Hegel. Essa teoria é a de que cada consciência (pessoa) mantém uma hostilidade fundamental direcionada a qualquer outra consciência, e que cada sujeito (pessoa) se coloca como Essencial ao se opor a todos os Outros. Ou seja, que as relações humanas são fundamentalmente antagônicas, e que a hostilidade é recíproca. Aquele que não obtém sucesso em se opor a um Outro se vê obrigado a aceitar os valores do outro, e então se torna submisso a ele. Agora, ao perguntar por que as mulheres não contestam a soberania dos homens, Simone de Beauvoir está perguntando por que as mulheres não se opuseram antagonicamente aos homens da mesma forma que os homens se opuseram às mulheres e uns aos outros. Ao fazer essa pergunta, ela sugere que (1) as mulheres nunca se opuseram aos homens e, portanto, são submissas não porque “perderam para os homens”, mas sim por terem aceitado uma posição de subordinação, e (2) que para alcançar o status de sujeito, para resistir à dominação dos homens, entre outras coisas, as mulheres devem se opor aos homens como os homens se opuseram às mulheres e uns aos outros.
Ao discutir a subordinação das mulheres, Simone de Beauvoir argumenta que “o casal é uma unidade fundamental cujas metades se acham presas indissoluvelmente uma à outra”. A característica básica da mulher é ser fundamentalmente o Outro. Portanto, as mulheres “conquistaram” apenas o que os homens estavam dispostos a conceder, e nada tomaram. Simone de Beauvoir sugere razões para isso: as mulheres carecem de meios concretos ou organização; as mulheres não possuem passado ou história própria; as mulheres têm vivido dispersas entre os homens; e as mulheres solidarizam com os homens de sua classe e raça. Ela aponta, por exemplo, que mulheres brancas se aliam aos homens brancos, não às mulheres negras. Ela acrescenta que renunciar o status de Outro é renunciar os privilégios conferidos através da aliança com uma casta superior. Ela conclui: “Assim, a mulher não se reivindica como sujeito, porque não possui os meios concretos para tanto, porque sente o laço necessário que a prende ao homem sem reclamar a reciprocidade dele, e porque, muitas vezes, se compraz no seu papel de Outro.” Em outras palavras, de acordo com a Simone de Beauvoir, mais uma razão pela qual as mulheres não contestaram a soberania dos homens e afirmaram o direito à sua própria existência é a de que as mulheres não estão completamente insatisfeitas em ser definidas como Outro. Simone de Beauvoir então discute como tudo isso se deu, porque, como ela afirma: “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. Alguém não nasce uma mulher porque “mulher” é uma categoria construída. E está intimamente ligada à categoria “homem”.
Embora eu não concorde que as mulheres sempre estiveram submetidas aos homens e também que para resistir à soberania dos homens as mulheres devem agir como eles, ainda assim uma relação básica de dominação e subordinação parece existir entre homens e mulheres, e não é claro, com algumas exceções notáveis desde o início do Patriarcado, que mulheres resistiram essa relação. [nota: duas exceções notáveis recentes são as beguinas européias e comunidades femininas chinesas] Em minha opinião, a fim de avaliar plenamente essa relação de dominação e subordinação nós precisamos nos ater não apenas à abordagem do sexismo, ou até mesmo da homofobia ou heterossexismo, mas, principalmente, da relação do heterossexualismo em si. [nota: O que denomino heterossexualismo não é simplesmente uma questão de homens fazendo sexo procriativo com mulheres. Eu estou me referindo a um completo estilo de vida promovido e aplicado por todas as instituições formais e informais da sociedade dos Patriarcas, da religião à pornografia, ao trabalho doméstico não-remunerado à medicina. O heterossexualismo é um estilo de vida que normaliza a dominação de uma pessoa e a subordinação de outra. A relação entre mulheres e homens é considerada, dentro do pensamento anglo-europeu, como sendo a base da civilização. Eu concordo. E ela normaliza aquilo que é “essencial” à civilização anglo-européia a tal ponto que nós deixamos de perceber a dominação e subordinação em qualquer das suas capacidades “benevolentes” como sendo errada ou nociva: a relação “amorosa” entre homens e mulheres, a relação “pretetora” entre imperialistas e colonizados, a relação de “manutenção da paz” entre a democracia (capitalismo dos EUA) e ameaças à democracia. Eu acredito que, a menos que o heterossexualismo como um modelo de relação seja destruído, sempre permanecerão, na consciência social, conceitos que validam a questão.]
Compreender o sexismo envolve a análise de como o poder institucional está nas mãos dos homens, de como os homens discriminam as mulheres, de como a sociedade classifica os homens como a norma e as mulheres como passivas e inferiores, de como instituições masculinas objetificam as mulheres, de como a sociedade exclui as mulheres da participação como seres humanos plenos, e de como o que tem sido entendido como comportamento masculino normal é também violência contra as mulheres. Em outras palavras, analisar o sexismo é compreender primariamente como as mulheres são vítimas do comportamento masculino institucionalizado e normalizado.
Compreender o heterossexismo, bem como a homofobia [nota: Celia Kitzinger sugere que paremos de usar “homofobia”. Ela argumenta que o termo não surgiu do movimento de libertação das mulheres, mas sim da disciplina acadêmica da Psicologia. Ela questiona a caracterização do medo heteropatriarcal das lésbicas como algo “irracional”, ela questiona a orientação psicológica (ao invés de política) da “fobia”, e ela observa que, dentro da Psicologia, a única alternativa para a homofobia é o humanismo liberal.], envolve a análise, não apenas da vitimização das mulheres, mas também de como as mulheres são definidas em relação aos homens ou então inexistentes, de como lésbicas e homens gays são tratados – verdadeiros bodes expiatórios – como perversos, de como as escolhas de parceiros íntimos tanto para mulheres e homens são restringidas ou negadas por via de tabus a fim de manter uma determinada ordem social. (Por exemplo, se as relações sexuais entre homens fossem abertamente permitidas, então os homens poderiam fazer com os homens o que eles fazem com as mulheres e, então, [alguns] homens se tornariam o que as mulheres são. Isso é proibido. Ademais, se o amor entre as mulheres fosse abertamente explorado, as mulheres poderiam simplesmente se afastar dos homens, tornando-se “não-mulheres”. Isso, também, é proibido.) Concentrar-se no heterossexismo desafia a heterossexualidade como instituição, mas isso também pode induzir as lésbicas a encarar como um objetivo político nossa aceitação, assimilação até, na sociedade heterossexual: nós tentamos afirmar para os heterossexuais que somos normais (ou seja, iguais a eles), que eles são injustos ao nos estigmatizar, que é uma mera preferência sexual.
No seu estudo revolucionário sobre a heterossexualidade compulsória, Adrienne Rich nos desafia a encarar a heterossexualidade como uma instituição política que garante o direito dos homens do acesso físico, econômico e emocional às mulheres. Jan Raymond desenvolve uma teoria da hetero-realidade e argumenta: “embora eu concorde que nós vivemos em uma sociedade heterossexista, penso que a questão mais ampla é a que nós vivemos em uma sociedade hetero-relacional na qual muito das relações pessoais, sociais, políticas, profissionais e econômicas das mulheres são definidas pela ideologia de que a mulher existe para o homem.” Eu vou um pouco além.
Compreender o heterossexualismo envolve a análise da relação entre homens e mulheres na qual tanto homens quanto mulheres possuem um papel. O heterossexualismo significa homens dominando e tornando as mulheres inaptas a variadas atividades de diversas formas, desde ataques diretos a cuidados paternalistas, e mulheres desvalorizando (por necessidade) a criação de laços entre mulheres bem como encontrando conflitos inerentes entre compromisso e autonomia e, consequentemente, valorizando uma ética da dependência. O heterossexualismo é um estilo de vida (que os praticantes apresentam em gradações variadas) que normaliza a dominação de uma pessoa em uma relação e a subordinação da outra. Como resultado, o heterossexualismo debilita a agência feminina.
O que eu chamo de “heterossexualismo” não é simplesmente uma questão de homens fazendo sexo procriativo com mulheres. Ele é um completo estilo de vida que envolve um equilíbrio delicado, embora às vezes rude, entre a predação masculina e proteção masculina de um objeto feminino da atenção masculina. [nota: Penso que o modelo principal de interação pessoal para mulheres e lésbicas tem sido heterossexual. No entanto, para os homens na tradição anglo-européia, também tem havido um modelo de interação masculina homossexual – uma forma de criação de vínculos entre homens, muito embora o sexo entre homens tenha sido abominado. E embora não seja a minha intenção aqui analisar esse modelo, eu sugiro que ele gira em torno de um eixo de dominação e submissão, e que o heterossexualismo é basicamente um modelo homossexual masculino refinado.] O heterossexualismo é uma relação econômica, política e emocional particular entre homens e mulheres: os homens devem dominar as mulheres e as mulheres devem se subordinar aos homens de várias formas. [nota: Julien S. Murphy escreve: “A heterossexualidade é mais bem denominada heteroeconomia, pois ela se relaciona com a linguagem do intercâmbio, troca, barganha, leilão, compra e venda... A heterossexualidade é a economia da troca na qual uma estrutura de poder baseada em gênero continuamente se estabelece através da apropriação do partido desvalorizado em um sistema dual de gênero. Tal estabelecimento ocorre através de cada instância de ‘fazer um negócio’ no mercado do sexo.”] Como resultado, os homens presumem acesso às mulheres enquanto que as mulheres permanecem ligadas aos homens e são incapazes de manter uma comunidade de mulheres.
Nos EUA, as mulheres não podem aparecer em público sem que alguns homens se aproximem delas presumindo acesso às mesmas. De fato, muitas mulheres pensarão que algo está errado se isso não acontecer. Uma mulher é simplesmente alguém a quem tal comportamento é apropriado. Quando uma mulher está acompanhada por um homem, no entanto, ela geralmente não é mais considerada “mercadoria disponível”. Como resultado, homens próximos a mulheres – pais, namorados, maridos, irmãos, acompanhantes, colegas – se tornam protetores (em teoria), inviabilizando aproximações de outros homens.
O valor da proteção especial para com as mulheres é prevalente na nossa sociedade. Protetores interagem com as mulheres de maneiras que promovem a imagem da mulher como indefesa: homens abrem portas, puxam cadeiras, esperam que as mulheres se vistam de forma que interfiram na sua própria auto-proteção. E as mulheres aceitam isso como comportamento atencioso e elogioso, e vêem a si próprias como pessoas que necessitam de atenção e proteção especiais. [nota: Ao questionar o valor da proteção especial para mulheres, eu não estou dizendo que as mulheres nunca deveriam pedir ajuda. Isso é tolice. Eu estou falando sobre o ideal das mulheres como necessitadas de abrigo/suporte externo contínuo. O conceito de que crianças precisam de proteção especial é prevalente e eu contesto esse conceito quando ele é utilizado para anular sua integridade “para seu próprio bem”. Mas, ao menos, a proteção para crianças envolve em teoria garantir que crianças [meninos] possam crescer e aprender a cuidar de si próprios. Ou seja, crianças [meninos] são protegidas até que tenham crescido e desenvolvido habilidades e proficiências que necessitam a fim de viver nesse mundo. Nenhuma expectativa como essa está incluída no ideal de proteção especial para mulheres: esse ideal não inclui a expectativa de que as mulheres estarão algum dia na posição de cuidar de si próprias (crescer).]
O que uma mulher se depara em um homem é ou um protetor ou um predador, e os homens estabelecem suas identidades através de um ou outro desses papéis. Isso tem no mínimo cinco conseqüências. Primeiro, não pode haver protetores a menos que exista um perigo. Um homem não pode se identificar no papel de protetor a menos que exista alguém que precise de proteção. Então, é no interesse dos protetores que existam predadores. Segundo, para serem protegidas, as mulheres devem estar em perigo. Ao retratar as mulheres como desamparadas e indefesas, os homens retrata as mulheres como vítimas... e, portanto, como alvos.
Terceiro, uma mulher (ou garota) é vista como objeto da excitação masculina, e, dessa forma, sua causa. Isso fica claro no caso do estupro: ela deve ter feito algo para tentá-lo – pobre criatura hormonal que ele é. Portanto, se as mulheres são seres que por natureza estão em perigo, obviamente, elas são seres naturalmente sedutores – elas ativamente atraem predadores. Quarto, para serem protegidas, as mulheres devem concordar em agir como os homens ditam às mulheres que devem agir: parecer femininas, provar que não são ameaçadoras, ficar em casa, ficar apenas com o protetor, desvalorizar suas ligações com outros mulheres e por aí vai.
Finalmente, quando as mulheres se desvirtuam do papel feminino se tornando ativas e “culpadas” [nota: Na sua análise dos contos de fadas, Andrea Dworkin aponta que uma mulher ativa é retratada como má (a madrasta) e uma mulher boa está geralmente dormindo ou morta (Branca de Neve, Bela Adormecida).], é uma mera questão de lógica que os homens as retratem como vis e aumentem a violência física evidente contra elas a fim de reafirmar o status de vítima das mulheres. Por exemplo, à medida que a demanda pelos direitos das mulheres no EUA se tornou publicamente perceptível, a imagem de mulheres sozinhas como “putas” convidando ataque também se tornou prevalente. Uma mulher sozinha pedindo carona é vista não como alguém a ser protegida, mas como alguém que abdicou de seu direito à proteção e, portanto, como alguém que é um alvo para ataque. O grande aumento de pornografia – entretenimento produzido por e para homens sobre mulheres – é a resposta generalizada dos homens à demanda do movimento de libertação das mulheres por integridade, por autonomia e dignidade.
O que as feministas radicais expuseram através de toda a sua pesquisa sobre incesto (estupro da filha) e espancamento de esposas é que os protetores são também predadores. Obviamente, não todos os homens são espancadores de esposas ou namoradas, porém mais da metade daqueles que vivem com mulheres são. E, também, um número significativo de casa de família nos EUA abriga um homem “incestuoso”.
Embora homens possam demonstrar preocupação sobre o abuso de mulheres, eles possuem uma relação com o abuso diferente daquela das mulheres; suas preocupações não são as preocupações das mulheres. Por exemplo, frequentemente homens ficam furiosos com o fato de que uma mulher foi estuprada ou espancada por outro homem. Porém, isso seria ou o homem se posicionando em seu papel de protetor – raramente, se alguma vez, lhe ocorre ensiná-la auto-defesa – ou um homem profundamente afetado por danos causados à sua “propriedade” por outro homem. E, enquanto que alguns homens sintam desprezo por homens que espancam ou estupram, Marilyn Frye sugere que é bem possível que o seu desprezo surja não do fato de que o abuso da mulher está ocorrendo, mas sim do fato de que o abusador ou estuprador precisa recorrer à força para obter aquilo que eles próprios obtém mais sutilmente pela arrogância.
A corrente disposição dos homens no poder de aprovar leis restringindo a pornografia é uma questão de homens tentando restabelecer a imagem assexuada e virginal de (algumas) mulheres que eles podem então proteger em suas casas. E eles estão usando em sua defesa mulheres da direita bem como feministas que parecem estar pedindo proteção, como mulheres direitas, ao invés de exigindo libertação. Os homens usam da violência quando as mulheres não prestam atenção a eles. Então, quando as mulheres pedem proteção, os homens podem encontrar motivações ao perseguir os predadores – particularmente aqueles de uma raça ou classe diferente.
Em outras palavras, a lógica da proteção é essencialmente a mesma da predação. Através da predação, os homens fazem coisas com as mulheres e contra as mulheres que as violam e minam sua integridade. No entanto, a proteção objetifica tanto quanto a predação. Para proteger mulheres, os homens fazem coisas com e contra ela; agindo “pelo próprio bem de uma mulher”, eles violam sua integridade e minam sua agência.
A proteção e a predação surgem da mesma ideologia de dominância masculina, no sentido de que é indiferente à sustentação bem-sucedida da dominação masculina qual das duas condições as mulheres aceitam. Portanto, Sonia Johnson afirma: “Nossa convicção de que se cessarmos de estudar e monitorar os homens e suas mais recentes loucuras, que se deixarmos de “arranhar” aterrorizadas e chutar, alternado com choramingos e apego exagerado – toda a nossa relação sadomasoquista doentia com os Mestres – eles ficarão furiosos e nos matarão é pura superstição. Com nossos olhares fixos neles, eles nos matam diariamente; com nossos olhares cravados nesses, eles ficam furiosos."
Algumas das primeiras feministas radicais afirmaram que mulheres são colonizadas. Vale a pena considerar essa afirmação. Aqueles que desejam dominar um grupo e que são bem-sucedidos obtêm controle através da violência. Essa demonstração de força, no entanto, requer esforços e recursos tremendos; então, colonizadores introduzem valores retratando a relação do colonizador dominante com o colonizado subordinado como natural e normal.
Uma das primeiras ações dos colonizadores após a conquista é controlar a linguagem, trabalho esse frequentemente realizado por missionários cristãos. Sua missão é dar à linguagem uma forma escrita e então erguer escolas onde ela é ensinada aos nativos da terra. Aqui, novos valores são introduzidos: por exemplo, conceitos de “claro”/”iluminado” e “escuro”/”negro” com as conotações de “bom” e “mau”, respectivamente. Palavras para superiores e divindades então passam a carregar uma conotação “clara”, bem como aparecer no gênero masculino. Ademais, valores são incutidos os quais apóiam a apropriação colonial de recursos naturais, e negam os costumes ancestrais e independência econômica do colonizado. À medida que os colonizados são forçados a utilizar a linguagem e esquema conceitual dos colonizadores, eles podem começar a internalizar esses valores. Essa é a “salvação”, e os colonizadores aplicam a doutrina daquilo que chamaram Destino Manifesto ou “fardo do homem branco”.
A teoria do Destino Manifesto implica que os colonizadores estão trazendo civilização (a versão secular da salvação) aos “bárbaros” (“pagãos”). Os colonizadores retratam os colonizados como passivos, como desejando e precisando de proteção (dominação), como sendo cuidados “para seu próprio bem”. Qualquer um que resista à dominação será visto como anormal e atacado como um risco à sociedade (“civilização”) ou chamado de louco e isolado em nome da proteção (dele mesmo ou da sociedade).
Dessa forma, os colonizadores passam da predação – ataque e conquista – à proteção benevolente. Aqueles que foram colonizados são retratados como desamparados, infantis, passivos, e femininos; e os colonizadores se tornam governantes benevolentes, aceitando o fardo da administração “civilizada” de recursos (exploração).
Depois que a ordem social foi estabelecida, caso os colonizados comecem a resistir à proteção e benevolência, insistindo que eles preferem fazer tudo por si mesmos, independente das conseqüências imediatas, os colonizadores mais uma vez se tornarão predadores, aumentando a violência para convencer os colonizados de que eles precisam de proteção e que eles não conseguem sobreviver sem os colonizadores. Uma das frases atribuídas a Mahatma Gandhi no filme Gandhi de importância para esse argumento: “A fim de manter a benevolência e nos dominar, vocês devem nos humilhar”. Quando tudo falha, os homens partirão para a guerra para afirmar sua “masculinidade”: seu “direito” de conquistar e proteger mulheres e outros seres “femininos” (ou seja, qualquer um que eles possam dominar).
O objetivo da colonização é a apropriação de recursos estrangeiros. A colonização funciona tornando um povo inapto e economicamente dependente. Em seu livro sobre colonialismo, Como a Europa Subdesenvolveu a África, Walter Rodney argumenta que as sociedades africanas não teriam se tornado capitalistas sem o colonialismo branco. Sua tese é a de que a África estava progredindo economicamente de uma maneira distinta do desenvolvimento pré-capitalista até que os europeus chegaram para colonizar a África a subdesenvolvê-la. Restringindo o desenvolvimento da economia africana, e a reconstruindo para alcançar seus objetivos, os europeus destituíram os africanos de seus terras e recursos. Além disso, os europeus destituíram os africanos de suas habilidades econômicas autônomas, primariamente ao transformar o sistema educacional e ensinar os povos africanos a rejeitar o conhecimento de seus ancestrais. Essa desabilitação dos povos conquistados é crucial para a dominação, pois ela significa que os colonizados se tornam dependentes dos colonizadores para a sua sobrevivência. Na verdade, entretanto, são os colonizadores que não conseguem sobreviver – como colonizadores – sem os colonizados.
Bette S. Tallen sugere que, de forma semelhante, as mulheres foram desabilitadas/castradas sob o heterossexualismo, tornando-se economicamente dependentes dos homens, enquanto que os homens se apropriam dos seus recursos. Como Sonia Johnson aponta: “de acordo com estatísticas das Nações Unidas, embora as mulheres executem dois terços do trabalho no mundo, nós ganhamos apenas um décimo da renda mundial e somos donas de apenas um centésimo das propriedades do mundo”. A desabilitação das mulheres varia dependendo de condições históricas e materiais específicas. Por exemplo, na sua análise da Grã-Bretanha pré-industrial do século XVII, Ann Oakley observa que mulheres assumiam muitas profissões quando separadas de seus maridos, ou quando viúvas. A revolução industrial mudou tudo isso e privou muitas mulheres de suas habilidades. Anteriormente a isso, durante os tempos da caça às bruxas, os homens europeus se apropriaram das habilidades de cura, parto, ensino das mulheres, e tentaram destruir as suas habilidades psíquicas. [nota: Atualmente, os homens estão tentando controlar as capacidades reprodutivas das mulheres ao controlar os órgãos reprodutivos femininos e processos femininos.] Como Alice Molloy escreve, “a suposta história da feitiçaria é simplesmente o processo pelo qual as mulheres foram separadas umas das outras e do seu potencial para sintetizar informação”. Em geral, muitas mulheres não mais possuem seus próprios projetos, elas perderam o acesso a suas próprias ferramentas. Como resultado, elas são coagidas a adotar uma ideologia de dependência dos homens.
O heterossexualismo possui certas similaridades com o colonialismo, particularmente na sua manutenção por via da força quando o paternalismo é rejeitado (ou seja, o aumento da predação dos homens quando as mulheres rejeitam sua proteção), e na sua representação da dominação como natural (os homens dominam as mulheres tão “naturalmente” quanto os colonizadores dominam os colonizados, e sem nenhuma noção de se próprios como estando a oprimir aqueles que dominam exceto durante os momentos de agressão evidente) e na desabilitação das mulheres (tornando-as inaptas de diversas formas a variadas atividades). E, da mesma que são os colonizadores que não conseguem sobreviver como colonizadores sem os colonizados, são os homens que não conseguem sobreviver como homens (protetores ou predadores) sem as mulheres.
Complementando a função de protetor/predador dos homens, está o conceito de “mulher”, particularmente como ele opera na sociedade mainstream dos EUA. Consideremos do que esse conceito carece. Ele carece (1) uma noção do poder feminino, (2) qualquer sugestão de que as mulheres como um grupo têm sido alvos da violência dos homens, (3) qualquer sugestão da resistência feminina, tanto coletiva quanto individual, à dominação e controle dos homens, e (4) qualquer noção do vínculo lésbico.
O conceito de “mulher” não inclui nenhuma noção verdadeira de poder feminino. Certamente, ele não inclui nenhuma noção de mulheres como forças conquistadoras e comandantes. De forma mais significativa, ele não inclui nenhuma noção de força e competência. Eu não estou negando que existem muitas mulheres fortes. E, quando as mulheres encorajam umas às outras em desafio à avaliação dominante, imagens significativas aparecem. Mas, com o passar do tempo sob o heterossexualismo, essas imagens tendem a ser modificadas por apelos à feminilidade ou são utilizadas contra as mulheres. Sem uma suficiente deferência aos homens, as mulheres perceberão que os conceitos de “vaca castradora”, “sapatão” ou similares são utilizados para mantê-las na linha.
Homens de um determinado grupo modificam parcialmente a “feminilidade” a fim de enfatizar a competência e a habilidade femininas quando eles realmente precisam de ajuda extra: durante guerras – Rosie the Riveter, por exemplo [nota: Ícone cultural americano da segunda grande guerra. Ela representa as milhares de mulheres que trabalharam em fábricas durante a produção de armamento militar para a Segunda Guerra Mundial.]; em fazendas pequenas; em movimentos revolucionários; em kibbutzim, onde o Estado é instável; em uma comunidade profundamente dividida sob opressão, etc. Porém, uma vez que o seu domínio está estabelecido de forma mais sólida, os homens retomam o estereótipo feminino (ao mesmo tempo que esperam que as mulheres executem a maior parte de seus trabalhos sem receber nenhum benefício – trabalhos domésticos, por exemplo).
No seu artigo sobre mulheres negras nas cidades, Pat Robinson relaciona a perda da auto-consciência e poder de um povo com a perda de suas divindades. Ela afirma, “para que um grupo seja controlado, é preciso que sejam tomados seus deuses, suas próprias reflexões acerca de si mesmos, e sua consciência interior”. Quando encontramos referências a deusas de qualquer cultura na cultura anglo-européia dominante, elas estão sendo raptadas ou estupradas, e/ou são mães. [nota: Existem muitas outras deusas além das deusas da fertilidade e da maternidade. Há deusas da caça, da tecelagem, da sabedoria, das mudanças, do inverno, da floresta, da terra, dos mortos, da justiça, do amor, da comida, do sol, do fogo, da escrita, da aurora, da vingança, da menarca, da lua, do mar, dos vulcões, e das bruxas e da mágica – citando apenas algumas. Ademais, há motivos para acreditar que deusas obesas, como a Vênus de Willendorf, representavam não maternidade, mas sim poder: as camadas de gordura eram camadas de poder.] De forma significativa, a única figura feminina presente no pensamento anglo-europeu é a Virgem Maria, resquício de uma antiga deusa, transformada em uma vítima-modelo de estupro, com a reputação de ter dito a um deus, “faça-se em mim segundo a tua vontade”.
Pat Robinson prossegue observando que, para controlar um povo, enquanto que um grupo deve tomar-lhes suas próprias reflexões acerca de si mesmos, ele deve primeiramente utilizar de força. (Isso, obviamente, é o processo inicial de colonização.) A segunda carência no conceito de “mulher” é uma noção de que a força é utilizada contra as mulheres como um grupo. A literatura feminista tem discutido o massacre das bruxas na Europa. Alguém poderia perguntar como uma destruição em massa poderia ser erradicada da consciência coletiva. Talvez ela tenha sido simplesmente suprimida. Porém, quando uma ordem social requer a exterminação de um determinado grupo, e essa exterminação é virtualmente bem-sucedida, a memória subseqüente desse processo pode ser erradicada ao ser renomeada. O massacre das bruxas na Europa por um período de mais de trezentos e cinqüenta anos sofreu essa renomeação. A caricatura das bruxas nos “ataca” anualmente na forma de um evento da mídia de massa nos EUA: o Halloween.
O uso da força ou violência contra as mulheres como um grupo não esteve limitada à Europa. Mary Daly, entre outras, procurou trazer à consciência feminista dos EUA o fato de que tal força foi e continua a ser usada contra as mulheres em todas as partes do mundo. E embora a prática dos assassinatos das viúvas indianas tenha sido reconhecida como um problema, isso ocorreu apenas porque os homens no poder recentemente o denominaram um problema. Da mesma forma, embora na China os pais tenham considerado que a atadura dos pés não é economicamente útil e, portanto, “imoral”, nossa memória e consciência do que levou a essa prática e por que ela foi perpetuada por tanto tempo está desaparecendo. Também, o infanticídio feminino assumiu sua posição como uma expressão de misoginia.
Uma vez que é inexistente a noção de que a violência tenha sido alguma vez direcionada às mulheres como um grupo, é difícil ter uma perspectiva da magnitude da força utilizada contra as mulheres atualmente. Enquanto que mulheres nos EUA podem ficar horrorizadas com o espectro da mutilação genital africana e as mortes das viúvas indianas, estudantes africanas (particularmente nigerianas) e indianas nas turmas para as quais leciono ficam não menos horrorizadas com a incidência de estupro e a quantidade de pornografia que constituem uma parte diária das vidas as mulheres nos EUA. Com exceção das feministas radicais, ninguém nos EUA percebe a incidência fenomenal de incesto (estupro da filha), espancamento da esposa, estupro, prostituição forçada e a ideologia da pornografia – retratada não apenas nas revistas masculinas, mas na televisão, outdoors, em supermercados, em escolas, e em geral em todo setor público e privado que uma mulher freqüenta – como uma forma de ataque orquestrado contra as mulheres. Não existe uma noção geral de que, como Sonia Johnson aponta, os homens tenham declarado guerra contra as mulheres; pelo contrário, esse ataque – já que os homens prestam atenção às mulheres – é nomeado “atração”, até mesmo “admiração”.
Em terceiro lugar, o conceito de “mulher” não inclui uma noção de resistência feminina – coletiva ou individual – à dominação masculina. Embora existam evidências de que amazonas tenham vivido na África do Norte, na China, na Anatólia (Turquia) e entre o Mar Negro e o Mar Cáspio [nota: Em 1979, o Chicago Sun-times, por exemplo, relatou a descoberta dos restos mortais de uma tribo de amazonas que viveu há 2500 anos na República da Moldávia. Arqueólogos soviéticos encontraram uma “mulher guerreira, seu cavalo de guerra, uma lança, brincos de ouro e outros adornos” em um terreno de enterro próximo à vila de Balabany.], as amazonas são tratadas repetidamente como uma piada ou algo do passado. Porém, como Helen Diner escreve: “Nas celebrações em honra dos mortos, Demóstenes, Lísias, Himérios, Isócrates e Aristides glorificam a vitória sobre as Amazonas como sendo mais importante do que aquela sobre os Persas ou qualquer outro feito na história... As guerras entre os Gregos e Persas foram guerras entre duas sociedades dominadas pelos homens. Na guerra contra as Amazonas, a questão era qual das duas formas de vida iria moldar a civilização européia à sua imagem.” De forma significativa, até mesmo feministas e feministas lésbicas evitam a idéia das amazonas, aparentemente por receio de parecerem alheias à realidade (ao consenso). Com algumas exceções notáveis, nós não estamos respondendo ao chamado de Maxine Feldman, “Mulheres amazonas, ergam-se.” Há pouca celebração das amazonas (embora nós estejamos começando a ouvir novamente sobre deusas e bruxas). Nós não reconhecemos as amazonas nem mesmo como defensoras simbólicas das mulheres – e isso em um tempo em que a violência dos homens contra as mulheres é evidente. Ao invés disso, até mesmo feministas radicais fazem pressão por maior proteção da polícia e do Estado. As amazonas – bem como as guerreiras femininas como aquelas nas sociedades dahomey ou nootka – simplesmente não se enquadram dentro do conceito de “mulher” da sociedade mainstream dos EUA.
Uma vez que não há nenhuma memória mitológica, muito menos histórica, da resistência feminina à dominação dos homens, atos isolados e individuais de resistência feminina são também tornados imperceptíveis como resistência, particularmente, como eu argumento abaixo, através do conceito de “feminilidade”. Uma “mulher” é alguém cuja identidade se dá através da sua aliança com um homem a tal ponto que qualquer mulher que resiste à violência masculina, aos avanços dos homens e ao acesso exigido pelos mesmos não é uma mulher de verdade.
O valor da “mulher”, portanto, exclui uma noção da presença, habilidade e poder femininos, de uma consciência de que violências têm sido e são perpetradas contra as mulheres como um grupo, e uma noção da resistência feminina à dominação masculina. Ele também exclui uma noção do vínculo lésbico. Adrienne Rich assumiu a tarefa de abordar (1) a ideologia “através da qual a experiência lésbica é entendida em uma gradação de desviante a abominável, ou simplesmente tornada invisível”; (2) “como e por que a escolha das mulheres por mulheres como companheiras amorosas, parceiras, colegas, amantes, comunidade, tem sido esmagada, invalidada, forçada ao acobertamento e a ser mascarada”; e (3) “a invisibilização em potencial ou total em uma gama de textos, incluindo aqueles da cultura feminista.” Como escreve Harriet Ellenberger: “Um tabu central no Patriarcado é o tabu contra mulheres unindo-se a mulheres – e, no entanto, essa união, aliança, ligação tornadas tabu têm ocorrido e continuam a ocorrer bem debaixo de seus narizes, e homens e a maioria das mulheres não pensam que elas são reais.”
O que o conceito de “mulher” inclui é igualmente significativo. Segundo a denominação masculinista das mulheres, uma “mulher” (1) é alguém que se identifica com homens, cuja identidade surge através de sua relação com o homem, (2) é alguém que se faz atraente aos homens, (3) é um objeto a ser conquistado pelos homens e (4) é uma reprodutora (de meninos).
A identidade de uma mulher é incorporada na sua relação com o homem: ela é antes de tudo e principalmente a mãe, esposa, amante, ou filha de algum homem e não de uma mulher. Como as Radicalesbians argumentaram em 1970: “Nós somos autênticas, legítimas, verdadeiras contanto que sejamos a propriedade de algum homem cujo nome carregamos. Ser uma mulher que não pertence a nenhum homem é ser invisível, patética, não-autêntica, não-verdadeira.” Uma mulher que não pertence a nenhum homem, ou não existe ou está tentando ser um homem. Ademais, uma “mulher” é responsável pela prestação de serviços sexuais aos homens. Se ela é boa ou má, qual o seu status ético, está baseado em sua disponibilidade sexual, preço e fidelidade aos homens. Em última análise, uma “mulher” é uma virgem ou uma puta – ou seja, ligada a um homem através do sexo.
Em segundo lugar, uma “mulher” é alguém que é atraente para os homens. Se ela não tenta se fazer atraente para os homens, considera-se que ela tem um problema sério. Na sociedade mainstream dos EUA, ser atraente significa que ela é caucasiana, de classe média-alta, praticamente anoréxica (isso é, doente), e jovem o bastante para não possuir rugas na sua face, embora ocasionalmente ela possa ser negra e “exótica”. Aquelas mulheres que não se enquadram nessas categorias, embora não sejam completamente descartas como mulheres, são, não obstante, forçadas a se sentir como substitutos ruins de uma mulher. [nota: Em outras partes do mundo, padrões diferentes podem se aplicar. Em alguns lugares, ser católica é essencial para a identidade da mulher, ou ser gorda, ou ser negra, não pálida. O modelo de “mulher” em termos da manifestação física tende a aderir aos valores dos homens no poder em um determinado local.] Além disso, uma “mulher” é alguém que deve ser protegida do que é mau (ou seja, “negro”) a menos que ela própria seja negra (ou seja, má) – nesse caso, outras mulheres devem ser protegidas dela. Quanto mais branca ela é, mais pura. Quanto mais negra ela é, mais perigosamente sexual. Novamente, ela é uma virgem ou uma puta – ou seja, branca ou negra.
Em terceiro lugar, uma “mulher” é alguém que deve ser conquistada por um homem. A ideologia da pornografia, de soft porn a snuff retrata uma mulher como um objeto (um receptor de uma ação – nesse caso, alguém a ser atacado e vencido), alguém que existe para ser dominada. Ela é caracterizada pelo seu desejo sexual, e ela é dominada através da violação – violão esta que ela deverá vir a desejar. A ideologia do romantismo (retratada popularmente nos romances de arlequim) é a mesma: uma mulher é um objeto (receptor de uma ação – nesse caso, alguém a ser protegido e seduzido), alguém que existe para ser conquistado. Ela é caracterizada por sua falta de desejo sexual – ela deve rejeitar as iniciativas sexuais (do homem) a fim de demonstrar o seu pudor; e, dessa forma, os homens sabem que quando ela diz “não”, na verdade ela quer dizer “sim”. Portanto ela, também, é dominada através da violação – violação da sua integridade –, violação esta que ela repentinamente começa a desejar. Tanto a pornografia quanto o romantismo nos dizem que uma mulher deve ser conquistada e dominada pela força da vontade do homem.
Finalmente, uma “mulher” é uma reprodutora. Uma mulher se realiza através da reprodução, sua possibilidade ética básica é a doação e o cuidado altruísta, e qualquer coisa que interfira com esse processo é suspeita. Além disso, nas ocasiões em que um povo está ameaçado porque os homens travam guerras, os homens ressaltam a reprodução excluindo todo o resto, e a supervisionam cuidadosamente. Nas sociedades anglo-européias, eurasiáticas e todas nas sociedades mainstream estadunidenses (central, do sul e norte), essa função não pode ser controlada por ela. Seu corpo não é seu para decidir sobre ele. A questão do aborto, por exemplo, como é abordada nos EUA, não é uma questão da mulher. Pois a questão diz respeito simplesmente a quais homens irão controlar os abortos das mulheres – o Estado ou homens individuais. E médicos exercendo sua preocupação paternalista pela ordem social esterilizam mulheres que consideram mães inadequadas, como mulheres negras pobres e porto-riquenhas. Uma “mulher” é uma reprodutora, e reprodutoras precisam de protetores que tomam as decisões sobre a reprodução, incluindo reconstrução genética. Ademais, obviamente, quando uma mulher procria com sucesso, o que ela procria é masculino – ou seja, alguém que perpetua a linhagem do seu marido. Uma “mulher”, portanto, é um objeto sexual essencialmente submisso a e dependente dos homens, alguém cuja função é perpetuar a raça (enquanto protetores e predadores põem em prática seu projeto de destruí-la). Não, ninguém nasce uma “mulher”.
[nota: Não é acidental que justamente à medida que a exigência feminista por direitos novamente obteve reconhecimento do público, aqueles no poder desviaram a atenção ética para a biologia – dessa vez, a sociobiologia. Aqui, entre descrições alegadas “objetivas” do comportamento animal, E. O. Wilson afirma que é um “fenômeno quase universal que machos são dominantes sobre fêmeas entre os animais.” Em parte alguma Wilson defende essa afirmação; ao invés disso, ela aparece adquirir corpo à medida que ele simplesmente descreve os fatos. Por exemplo, ele utiliza a palavra “harém” para descrever uma comunidade de babuínos hamadryas na qual as fêmeas são aterrorizadas à submissão e lealdade por um macho ameaçador. Entretanto, ele também utiliza esse termo para descrever comunidades centradas em fêmeas tais como as ovelhas montanhesas. O rebanho de ovelhas montanhesas é centrado nas fêmeas, fêmeas “herdam” os espaços de outras fêmeas, e as fêmeas permitem que apenas alguns machos tenham contato com elas – e isso apenas durante a temporada de acasalamento. Porém, pelo uso de Wilson da palavra “harém”, a pessoa que está lendo fica com a impressão de que os machos dominam as fêmeas nessa comunidade.
De forma significativa, Wilson considera a sociedade dos babuínos hamadryas como um modelo de desenvolvimento supremo (de heterossexualismo) em vertebrados superiores. Ele descreve fêmeas ameaçadas e atacadas como “cônjuges” que foram “recrutadas”; e se elas escapam, de acordo com ele, elas “se desviaram”. Em outra parte do livro, Wilson denomina os estágios iniciais desse comportamento ameaçador do macho como sendo “proteção”.
Talvez, a linha de raciocínio mais reveladora de Wilson surja quando ele alterna a frase “ação receptora da fêmea” com a frase “comportamento submisso da fêmea.” Através dessa equivalência, ele implica que, simplesmente ao praticar heterossexo, as fêmeas são dominadas pelos machos. Wilson descreve as fêmeas que não praticam heterossexo como sendo “tias solteironas”, ou como sendo “anti-sociais” se elas tentam escapar (como o fizeram as babuínas-anubis fêmeas que, em um experimento, cientistas puseram em uma comunidade de hamadryas). Uma vez que fêmeas fazendo sexo com machos é “natural”, presume-se logicamente que a dominação do macho é “natural”. Em suma, sob o paradigma conceitual vigente (patriarcal), a penetração do macho equivale à dominação do macho.] Eu desejo uma revolução moral.
Nós somos as mulheres sobre as quais os homens nos alertaram.
Traduzido de Lesbian Ethics - Sarah Lucia Hoagland]
Retirado do: http://www.politica-sexual.blogspot.com/
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