A Heterossexualidade Compulsória e a Existência Lesbiana

A Heterossexualidade Compulsória e a Existência Lesbiana


“Se mulheres são as fontes mais antigas de cuidado emocional e nutrição física tanto a crianças masculinas quanto femininas, seria lógico, pelo menos de uma perspectiva feminista, posicionar as seguintes questões: mesmo que a busca por amor e ternura em ambos sexos não originalmente levam às mulheres; por que de fato mulheres deveriam sequer redirecionar essa busca; por que sobrevivência da espécie, os meios de reprodução, e as relações emocionais/eróticas deveriam se tornar tão rigidamente identificadas umas com as outras; e por que tais restrições violentas deveriam ser encontradas necessariamente para obter a força total lealdade emocional e erótica das mulheres e subserviência aos homens? Eu duvido que muitas estudiosas feministas tenham tomado as dores de reconhecer as forças societais que extraem as energias emocionais e eróticas delas mesmas e de outras mulheres e de valores identificados nas mulheres. Essas forças, como eu tentarei demonstrar, vão desde escravidão por força física literal ao disfarce e distorção de opções possíveis…” Adrienne Rich (1981)
Em “A Heterossexualidade Compulsória e a Existência Lesbiana”, Adrienne Rich expõe duas questões que a preocupam. A primeira é “como e porque a escolha feita pelas mulheres de gostar de outras mulheres como companheiras e amantes, de compartilhar suas vidas, suas paixões, seus trabalhos, ou de viver em tribo com elas tem sido mal vista, invalidada, condenada à clandestinidade ou à mentira”. Na segunda ela se interroga sobre “a omissão total ou quase, da existência lésbica em uma vasta extensão de escritos, incluindo os escritos feministas”. Ela acredita que “não é suficiente para o pensamento feminista que existam textos especificamente lésbicos”, pois “qualquer teoria ou criação política/cultural que trata a existência lésbica como um fenômeno marginal ou menos ‘natural’, como mera ‘preferência sexual’, ou como imagem refletida ou das relações heterossexuais ou homossexuais masculinas é enfraquecida por meio disso, quaisquer que sejam suas outras contribuições. A Teoria Feminista não pode mais dispor-se meramente a expressar uma tolerância do ‘lesbianismo’ como um ‘estilo de vida alternativo’, ou fazer alusão simbólica às lésbicas. A crítica feminista da orientação heterossexual obrigatória para mulheres está por um longo tempo atrasada.”
A heterossexualidade obrigatória garante o acesso das mulheres pelos homens, que exercem seu poder segundo as oito seguintes características apontadas por Adrienne Rich:
1. interdição às mulheres de formas de sexualidade fora de seus domínios, por meio da clitoridectomia e infibulação; cintos de castidade; punição, incluindo a morte, para adultério feminino; punição, incluindo a morte, para a sexualidade lésbica; negação psicanalítica do clitóris; censuras contra a masturbação; negação de sensualidade material e pósmenopausal; histerectomia desnecessária; imagens pseudolésbicas na mídia e literatura; fechamento de arquivos e destruição de documentos referentes à existência lesbiana.
2. a sexualidade masculina é imposta, por meio do estupro (incluindo estupro marital) e espancamento da esposa; incesto pai-filha, irmão-irmã; a socialização de mulheres para sentirem que o “impulso” sexual masculino corresponde a um direito; a idealização do romance heterossexual na arte, literatura, mídia, publicidade, e assim por diante; casamentos de crianças; casamentos arranjados; prostituição; o harém; doutrinas psicanalíticas de frigidez e orgasmo vaginal; representações pornográficas de mulheres respondendo aprazivelmente à violência sexual e humilhação (uma mensagem que o sadismo heterossexual é mais “normal” que a sensualidade homossexual).
3. os homens exploram o trabalho feminino e controlam a produção, através das instituições do casamento e da maternidade nas quais as mulheres são sistematicamente desvalorizadas e exercem trabalho doméstico gratuito; a segregação horizontal de mulheres em trabalho pago; o engodo da mobilidade ascendente simbólica da mulher; a cafetinagem; o controle masculino do aborto, contracepção e nascimento de crianças.
4. a apropriação e a retirada dos filhos por meio do direito-do-pai e do “sequestro legal”; as esterilizações forçadas; o infanticídio sistematizado; a negação da maternidade lésbica por tribunais de justiça; o tratamento inadequado da obstetrícia masculina; o uso da mãe como “torturadora simbólica” em mutilação genital ou em bandagem dos pés da filha (ou da mente) para ajustá-la ao casamento, são alguns dos modos pelos quais os homens roubam as crianças de suas genitoras.
5. coibir os movimentos corporais das mulheres e impedir seu movimento, por meio do estupro como terrorismo, mantendo as mulheres fora das ruas; a bandagem nos pés; o atrofiamento das capacidades atléticas das mulheres; os códigos de vestimentas; o véu; o assédio sexual nas ruas; a dependência econômica forçada de esposas.
6. o uso das mulheres como objetos de trocas, por exemplo, a cafetinagem; casamentos arranjados; o uso das mulheres para expor produtos; o uso de roupas sensuais para exibicionismo público; o uso de mulheres como anfitriãs para facilitar trocas masculinas.
7. o corte da criatividade feminina através da caça às bruxas, mulheres inteligentes e curandeiras; a perseguição e massacre de mulheres independentes, “não assimiladas”; a limitação da plenitude feminina ao casamento e à maternidade ou mesmo a censura às tradições femininas; a exploração sexual de mulheres por homens artistas e professores; a interrupção social e econômica das aspirações criativas das mulheres; e:
8. a retirada das mulheres do domínio de conhecimentos e realizações culturais, como é o exemplo do silêncio da existência lesbiana na história; a estereotipação de papéis sexuais que desviam mulheres da ciência, tecnologia e outras atividades “masculinas”; ligação masculina social/profissional que exclui mulheres; discriminação contra as mulheres nas profissões.
Estes são alguns dos métodos pelos quais o poder masculino é manifestado e mantido. Olhando para o esquema, o que certamente impressiona é o fato de que nós estamos confrontando não uma simples manutenção de desigualdade e posse de propriedade, mas um agrupamento de forças pervasivo, estendido desde a brutalidade física ao controle de consciência, que sugere que uma enorme força contrária potencial está tendo de ser contida.
Algumas das formas pelas quais o poder masculino manifesta a si mesmo são mais facilmente reconhecíveis como forçando a heterossexualidade para mulheres do que outras. No entanto cada uma listada contribui com o agrupamento de forças dentro do qual mulheres têm sido convencidas que o casamento e a orientação sexual em direção aos homens são inevitáveis, ainda que insatisfatórios ou componentes opressivos de suas vidas.
“Considerando o desenvolvimento sexual detido que é compreendido a ser normal na população masculina, e considerando o número de homens que são cafetões, proxenetas, membros de gangues de escravidão, oficiais corruptos que participam neste tráfico, proprietários, operadores, empregados de bordéis e alojamentos e instalações de entretenimento, provedores de pornografia, associada com a prostituição, espancadores de esposa, molestadores de crianças, perpetradores de incesto, fregueses e estupradores, uma pessoa não poderia não ficar momentaneamente atordoada pela enorme população masculina comprometida com a escravidão sexual feminina. O imenso número de homens engajados nestas práticas devia ser motivo para declaração de uma emergência internacional, uma crise de violência sexual. Mas o que devia ser motivo para alarme é em vez disso aceito como coito sexual normal.”
- Kathleen Barry, “Female Sexual Slavery” (1979).
Susan Calvin, em sua rica e provocativa, se altamente especulativa, dissertação sugere que o patriarcado se torna possível quando o grupo feminino original, que inclui crianças mas ejeta machos adolescentes, vem a ser invadido e excedido em número por machos; que não o casamento patriarcal, mas o estupro da mãe pelo filho, vem a ser o primeiro ato de dominação masculina. A entrada à força, ou alavancagem, que permite que isto aconteça não é somente uma simples mudança nas relações de sexo; ela é também a ligação mãe-criança, manipulada por machos adolescentes a fim de permanecerem dentro da matriz passada a idade de exclusão. A afeição maternal é usada para estabelecer o direito masculino de acesso sexual, que, entretanto, deve ser desde então mantido por força (ou através do controle de consciência) já que a ligação adulta profunda original é aquela da mulher para a mulher. (Lesbian Origins, 1978)
“Eu acho esta hipótese extremamente sugestiva, já que uma forma da falsa consciência que serve a heterossexualidade compulsória é a manutenção de um relacionamento mãe-filho entre mulheres e homens, incluindo a demanda que as mulheres forneçam conforto maternal, nutrição incondicional, e compaixão para seus assediadores, estupradores, e espancadores (assim como para os homens que as vampirizam passivamente) quantas mulheres fortes e assertivas não aceitam postura masculina de ninguém mas dos seus filhos?
Mas seja qual for a sua origem, quando nós olhamos firme e completamente para a extensão e elaboração das medidas projetadas para manter as mulheres dentro de um confinamento sexual masculino, se torna uma questão inescapável se o assunto que temos que nos dedicar como feministas não é somente ‘desigualdade de gênero’, nem a colonização da cultura pelos homens, nem os tabus contra a homossexualidade, mas o da obrigatoriedade da heterossexualidade para as mulheres como um meio de assegurar um direito masculino de utilização física, econômica e emocional. Um de muitos meios de coação é, logicamente, tornar invisível a possibilidade lesbiana, um continente engolfado que frequentemente levanta-se de tempos em tempos somente para se tornar submerso outra vez. A pesquisa e teoria feministas que contribuem com a invisibilidade ou marginalidade lesbiana estão trabalhando realmente contra a libertação e empoderamento das mulheres como um grupo.
A suposição que ‘a maioria das mulheres é naturalmente heterossexual’ coloca-se como um obstáculo teórico e político para muitas mulheres. Ela permanece como uma suposição convincente, parcialmente porque a existência lesbiana tem sido escrita fora da história ou catalogada na categoria de doença; parcialmente porque ela tem sido tratada como excepcional em vez de intrínseca; parcialmente porque reconhecer que para mulheres a heterossexualidade pode não ser uma ‘preferência’ de qualquer maneira, mas algo que tem de ser imposto, controlado, organizado, propagado e mantido pela força é um passo imenso a tomar se você se considera livremente e ‘naturalmente’ heterossexual. Ainda a incapacidade de considerar a heterossexualidade como uma instituição é como a incapacidade de admitir que o sistema econômico nomeado capitalismo ou o sistema de casta do racismo é mantido por um conjunto de forças que compreendem tanto a violência física quanto a falsa consciência. Tomar o passo de questionar a heterossexualidade como uma ‘preferência’ ou ‘escolha’ para mulheres – e efetuar o trabalho intelectual e emocional que segue – chamará por uma qualidade especial de coragem em feministas identificadas heterossexualmente, mas eu penso que as recompensas serão grandes: uma libertação do pensamento, a exploração de novos caminhos, a quebra de um outro grande silêncio, nova clareza nas relações pessoais.” Diz Adrienne Rich.
O pensamento radical de Rich se coloca na sua crítica à obrigatoriedade da heterossexualidade e da maternidade, reposicionando as mulheres em seu potencial emancipatório através dos grupos, das organizações de mulheres, expresso no termo “continuum lésbico”, que não se limita a uma relação sexual ou amorosa, mas vai além, indica a união entre mulheres contra a tirania masculina. As terminologias “continuum lésbico” e existência lesbiana foram criadas por Rich em contrapartida à conotação clínica e pejorativa do termo lesbianismo.
A militância, o grupo, a união das mulheres representam um complexo de resistência às várias formas de violência da supremacia masculina. A divisão sexuada da sociedade serve como justificativa para a dominação e a escravidão das mulheres, e tanto nos textos de Monique Wittig como no de Adrienne Rich, podemos encontrar a crítica radical à instituição do heterossexualismo, que nega a existência lesbiana por não conseguir enquadrá-la em seus parâmetros.
“A existência lesbiana compreende tanto a ruptura de um tabu como o rechaço de um modo de vida obrigatório. Também é um ataque direto e indireto ao direito masculino de acesso às mulheres. Podemos dizer que há um conteúdo político nascente no ato de eleger a uma amante ou a uma companheira de vida mulher frente à heterossexualidade institucionalizada. Mas para que a existência lesbiana complete este conteúdo político em uma forma liberadora até as últimas consequências, a decisão erótica deve aprofundar-se e expandir-se em uma identificação feminina consciente: em um feminismo lesbiano.” Adrienne Rich (Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence)

Retirado de: antipatriarchy.wordpress.com/.../o-pensamento-hetero-e-a-existencia-lesbiana/

Um comentário:

  1. Acrecenta aí Paulinha com pimenta!

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